30.5.25

Os leitores que ainda por cá andam, tolerantes com o desleixo e as intermitências deste blog, reclamaram da degeneração da viúva. Lamento a minha impotência perante as voltas da vida. Na qualidade de dependente absoluta da realidade, sem uma imaginação fértil de que me possa socorrer, vivo subjugada aos factos e mais não sei além de os relatar. 
Mas a boa notícia é que nem tudo está perdido. Na papelaria, por exemplo, as velhas suspiram pela farda e pelos olhos azuis do almirante, que está hoje na capa de todos os jornais a anunciar-se como um salvador. A elas, juntou-se a cabeleireira, e Gabi, a manicura sonsa, veio a reboque, inventando pretextos para disfarçar a curiosidade. Em torno da figura do candidato, cada uma engendra as suas fantasias, mais ou menos castas, mais ou menos atrevidas, sem, no entanto, deixar o verbo resvalar para lá da decência. Que sorte a dele! Não bastasse a imprensa toda a seu favor e os fotógrafos posicionados no ângulo certo, ainda se faz em seu nome o alarido de fim de tarde na papelaria.
—  A mim, nem que mo dessem de bandeja. É um vaidosão da treta. — diz a rapariga da papelaria, com um gesto largo de incómodo, como quem enxota moscas. Eu estou com ela. A vaidade é, de todos os pecados capitais, o que mais revela falta de inteligência. Tem o efeito oposto à intenção, pois quanto mais é feito para realçar virtudes, mais ao léu ficam as debilidades. 
A cabeleireira indigna-se e acusa a rapariga da papelaria de arrogância e desdém.
—  Olha, filha, hádes-me mostrar o teu caixote do lixo. Eu, pra mim, isto é um homem a sério. 
Atira beijos à capa do Jornal de Notícias. Gabi ri-se do devaneio adolescente da patroa mas aproveita o embalo. Se às casadas é permitido, podem certamente avançar sem medo as solteiras.
—  Um pedaço de mau caminho. Embora tenha idade para ser meu pai...
— Também o acho um senhor muito distinto.
— Tem classe, não tem, dona Fatinha?
— Nota-se que não é um qualquer. 
— Claro, um militar é um militar.
— Se fizer sempre como fez aquando da vacinação... 
— Sabe comandar. É disciplinado. Organizadinho. 
— E muito leal, de certeza. 
— O que mais falta são homens como ele, que fazem o que tem de ser feito.
— Como assim?
— Olhe, cada uma faça a sua interpretação.
— Que olhos...
— No fundo, é um herói, é o que ele é e o que sempre se disse que ele é.
— E a sotôra, vai votar nele?
A dona Maria Isabel — deus a conserve por muitos e longos anos na vizinhança deste blog — a quem a vida vivida contra correntes e dominações deu estatuto para sentenciar sobre o que bem lhe apeteça e mais ainda, pousa sobre as capas dos jornais, com delicadeza e autoridade, os dedos coroados de pedras muito antigas. 
— É engraçado como as mulheres querem sempre tanto e, no final, acabam todas por se contentar com muito poucochinho.

26.5.25

O homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta rebaixou a viúva ao território dos comuns mortais, provando que, afinal, vibra no sangue dela não apenas a poderosa energia dos que seduzem, mas também a astenia dos que se rendem.
Com um sopro mágico, apagou-se nela a expressão da volúpia e o olhar de autoridade sobre os homens na praceta. Gomos, sulcos e restantes delícias do corpo hibernam agora sob tecidos opacos, de caimento frouxo, que não ousam além do bege, do cinza e do azul do céu em dias assim-assim. Ao negrume do cabelo, capaz de criar diabólicas ilusões de ótica com o patrocínio da luz solar e das suas delicadas oscilações, substituiu-se a banalidade artificiosa do loiro. E no lugar dos sapatos de saltos finíssimos — que amiúde a encalhavam nas frestas da calçada, para consolo e diversão do senhor Pereira —, usa às vezes essas botas rasas, felpudas, aparentadas com pantufas, pelas quais há quem pague centenas de euros, embora, de aspeto, devessem confinar-se ao quarto de dormir. Não exagero se digo que a viúva é outra mulher, com o ar pragmático, quotidiano e benigno das donas de casa. Talvez se dê o caso de estar a amar e, amando, ter-se-á disposto a renunciar à sua vocação primordial e a entregar os seus trunfos. Cedo ou tarde, a pretexto de mais altos valores, quem não o faz? O amor é uma forma de corrupção como outra qualquer. 
A mulher do senhor Pereira não disfarça o alívio. Se algum dia ali teve uma inimiga, talvez possa ter agora uma aliada, alguém que finalmente aprendeu que os olhares de cobiça valem nada ao pé dos que nos adoram o rosto vincado do sono ao amanhecer. E assim a surpreendemos a comentar com o marido, em modo de elogio, aquilo que ambos concordaram em chamar discrição.
Para cada conceito existem, no mínimo, duas palavras possíveis que enquadram a realidade conforme ela nos seja adversária ou favorável. Entre essas possibilidades, há uma linha pálida e parcial, a linha da nossa conveniência. É em função dessa linha que distinguimos a obstinação da perseverança, a ganância da ambição, o desbocamento da frontalidade, a irresponsabilidade da audácia, a coscuvilhice da curiosidade, a posse da proteção, a cobardia da cautela. Distinguimos ainda os animais dos humanos, pois há muito cremos que o que em uns se apelida de irracionalidade, nos outros tem apenas a inspiradora simplicidade do erro. Do disfemismo ao eufemismo pode ir toda uma moral, uma vasta filosofia, mas também um mero juízo de circunstância, a voz de um desapontamento ou de uma febre. Reconheço que a figura da viúva se tornou inofensiva, não despertará como antes a virilidade dos homens. Mas a paz dos outros é a minha fome. Discreta para eles, insípida para mim.