21.10.24

Ainda nem nove da manhã e já socializam como suricatas. Partilham os feitos domésticos e familiares do fim de semana, a receita de feijoada de marisco, a roupa que engavetaram, cheirosa, sem vincos e a cuja lavagem cuidadosamente acrescentaram águas perfumadas, amaciantes, antiácaros e tudo a que não resistem na passagem pelo supermercado, inteiraram-se das promoções do mês, abusaram das bimbys, foram motoristas dos filhos e ocuparam-nos em todas as horas do dia com atividades coloridas e estridentes para os proteger do tédio, coseram os fatos para o halloween, deram sacos de coisas velhas às empregadas que têm sempre uma prima muito necessitada. A sua maior ousadia foi estragar a dieta devorando um pacote de batatas fritas. A culpa mais insuportável foi a de o terem feito às escondidas dos filhos. 
E tu, o teu fim de semana? perguntam-me. Como a adolescência apanhada no delito, levanto a cabeça, desafiadora, embora no fundo me envergonhe do meu desinteresse em ser também útil, instrumental e eficiente. Eu? Este fim de semana, Bárbara pediu-me que lhe tomasse conta da casa por uns dias. Juntamente com a casa, confiou-me a guarda de um amigo toxicodependente em abstinência, cheio de fantasmas e inseguranças. Não gosto da Bárbara, sinto por ela um asco visceral, anterior às nossas vidas, somos água e azeite. Custou-me aceitar o pedido, mas compadeci-me do amigo, ainda que me falte essa extensão do instinto maternal que dá a algumas mulheres o prazer de tomar conta de tudo o que bule e servir adultos como bebés. A minha amiga Rita partiu numa viagem de seis meses pela América do Sul, veio despedir-se e combinámos encontrar-nos na fronteira do Uruguai, no dia que separa os nossos aniversários. Qual fronteira? perguntei. A gente encontra-se de qualquer modo, disse ela. Entretanto, dei à luz uma filha com uma coroa na cabeça. Sofri muito ao expulsá-la, rasgaram-me por dentro os rendilhados áureos e as pedras preciosas, porém, quando a tomei no colo, chorei de felicidade, sempre quis ser mãe de uma mulher. Demoli, com as próprias mãos, as paredes da minha casa que estão viradas a nascente para ter mais panorama, se chover logo se vê. 
E tudo isto enquanto eu dormia. Imagem quando acordada.