30.8.24

Era capaz de me casar com o homem cínico só para pertencer à terra dele. Amaria prontamente esse outro rio, pelo qual posso dar o meu à troca, cansada que estou do escarcéu, das navegações em cortejo, dos arraiais flutuantes. Com a mesma vaidade com que apregoo as maravilhas do meu berço, seria capaz de dizer alto lá, que sou da raia, sou bilingue e melancólica, tenho uma casa virada a montante que os céus fustigam sem trégua com chuva miúda, noite e dia, dia e noite, em todas as estações. Faria votos a estas muralhas e esta ruína, ao verde tão verde, um verde mais que verde, um verde matizado e labiríntico que o punho dos homens não arrancou pela raiz nem dobrou para matar as suas fomes, à luz que doura as águas ao entardecer como se as premiasse pela espera, com suavidade e justiça, sem ostentação, sem esbanjamento, num brevíssimo estio. Posso ser de qualquer Norte e tanto me faz de qual sou, valem igual o norte invicto, o norte sangrado nos socalcos, o norte brumoso e húmido que range nos ossos dos velhos, o norte infernal e renegado que manda para lá do Marão. Todos se entendem e acolhem, tal qual os vizinhos de porta sempre aberta que dão de comer aos filhos uns dos outros e lhes limpam o nariz com o mesmo lenço de avental, por saberem que não é fácil a vida de ninguém. 
O homem cínico acha graça. Digo que quero ficar, tenho os olhos carregadinhos de paisagem, duas nascentes cujo frémito seguro com disciplina, e ele sorri, terno, como sorriria à criança pequenina que só se encanta por certas coisas do mundo porque ainda ignora as suas faces mais duras.

24.8.24

No velho regime de itinerância a que o calendário obriga, nossa senhora corre vilas e aldeias atendendo a todas as causas, às vezes em dois lugares distintos ao mesmo tempo, coisa que das divindades se espera e das mulheres se exige, nada faltando assim aos homens de boa vontade e das vontades em geral. É do socorro, dos remédios, da agonia, das angústias, do bom despacho, da boa viagem, do amparo, da graça, das dores, da esperança, do desterro, e quantas mais palavras ilustrem as cargas pesadas da humanidade e as recompensas que por elas hão de vir. Assim me espantou que, na fase de shoot out, a rapariga que rezava de joelhos na areia tenha acabado por ser, precisamente, a única a falhar o remate. Por sua causa, o sonho de toda a equipa ficou ali enterrado. Oficializada a derrota no mostrador eletrónico, ela atirou-se ao chão e chorou até o campo se ter esvaziado de cumprimentos, aplausos e disparos fotográficos. Parece impossível: pleno agosto e não sobrou, entre tantas nossas senhoras, uma que largasse a festa para acudir às suas orações.

18.8.24

Vivo mal com agosto. Nasci pelo solstício de inverno, mais de vinte e cinco graus e já me falham as pernas e o discernimento, arrasto-me pela casa, derreto na cama, hiberno aos domingos, temo a implosão do sol. Mantenho-me viva à custa de água e imaginação. Fecho os olhos e invento um arrepio, penso no regresso das chuvas, nas brisas de outono, no vento gelado de dezembro, num aguaceiro abundante que me apanhe desprevenida na rua, e a inevitabilidade de tudo isso consola-me. Com a lucidez que resta ainda me socorro da memória da noite de hoje, de estar contigo na Arca d' Água, deitada num desses bancos de jardim abençoados em todas horas do dia pela sombra das árvores - onde as mães se sentam a dar de comer aos filhos e os velhos pousam para chorar o tempo que já não é deles - e de acordar de repente, sem susto nem razão, com agosto todo colado ao corpo, tanto suor, tanta saudade.

14.8.24

Não fosse criatura minha, o rapaz voador havia de ser o meu maior amigo. Em quase tudo as nossas vidas se opõem  ele é amante de lonjura e precipícios, viciado em espanto, novidade e movimento, a mim agrada-me a terra firme, estar viva já tem sido ousadia bastante e se às vezes vou mais longe do que creio ser razoável é porque me leva ele pela mão. Não fosse criatura minha, eu procurá-lo-ia sempre que a coragem me faltasse, socorrer-me-ia da sua palavra lúcida e profunda, aprenderia com ele a interpretar pessoas, a enxotar fantasmas, a encantar crianças e animais, tomaria a amplidão do seu peito para repouso de todos os meus cansaços.
E o menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno? Ah, por esse eu havia de apaixonar-me perdidamente, escreveria versos anónimos nas páginas do seu caderno, beberia, sôfrega e de queixo caído, cada uma das suas teses e considerações, encobrindo a minha ignorância para não merecer o seu desdém. Embora sabendo que manobra o verbo com intenção de seduzir, ainda assim me deixaria levar. Usaria brilhos e dourados, pintaria os lábios, seria feminina e lunar. Investiria toda a imaginação no momento em que também a mim ele pedisse o número de telefone no cimo da Torre Eiffel, como o vi fazer a outra. 
Porém, não me calhou ser, na vida deles, assim suave e passageira. Calhou-me ser mãe e não outra coisa qualquer. Calhou-me o útero, a semente, a casa, o amor primordial, o posto de vigia, o dever do mestre, a dor e o poder da expulsão. 

13.8.24

 – Já leu o livro dos velhos no lar?
Vítima da emboscada da mulher do senhor Pereira, sobressalto-me à entrada do pão quente. Ela bate os tacões como cascos de cavalo para se anunciar, ávida de atenção, e eu compreendo-a por saber o quanto investe no traje, na maquilhagem e, pela época, também no bronzeado. Notam-se-lhe na pele os brilhos gordurosos e obscenos de agosto, é acabada de chegar de oito dias inteiros de torra ao sol, lambendo-se com óleos de coco e cenoura, estirada em resorts de onde nunca sai por repulsa às misérias e aos maus cheiros das latitudes tropicais. Numa mão tem um saco de moletes, na outra quatro anéis e um gesto afetado. Sorri de cima, maternal, piedosa, como se, na verdade, pouco ou nada lhe importasse a resposta que darei.
– Qual livro dos velhos no lar? 
É fácil saber do que fala a mulher do senhor Pereira, já que ela só sabe falar do que todos os outros falam. Mas, por razões que resumo ao puro sadismo (cada um diverte-se como quer em agosto), não me apetece facilitar-lhe a vida, nem ela precisa. Nada desbasta o orgulho aparente desta mulher e por maior que seja a estocada, jamais descerá do pedestal para olhar o outro com empatia, o seu prazer está em apiedar-se do sofrimento alheio e é a pena que sustém a sua verticalidade. Triste e grave é o que acontece aos outros, coitadinhosDe resto, a traição do marido, as afrontas da imperatriz, o caráter mole do caçula, o divórcio da filha mais nova, as esquerdices da mais velha, perante tudo isso se apresenta superior, ostentando sempre o fato de lantejoulas e as bandarilhas com que o toureiro cria no público a ilusão de que o massacre é, afinal, uma festa magnífica. Não é que seja mestre na arte da superação, mas é-o, sem dúvida, na ciência do disfarce. 
– Este.
Da carteira tira o livro que ganhou o consenso e a comoção de todos, sem exceções, reservas ou ressalvas. Depois, torna a guardá-lo rapidamente como se me tivesse mostrado uma arma. 
– E então, presta?
Dizem as verdades de trazer por casa que não se discutem os gostos e eu discordo, pois se houver território onde o debate desafia e enriquece é por certo o da subjetividade. O livro de que a senhora fala, ofereceram-mo há mais de ano e meio, peguei-lhe com curiosidade e abandonei-o a meio, vencida pelo tédio. Acredito que seja um livro de boas intenções, nobre pelo propósito e pela dedicação, mas é frígido, sem rasgo, não convence. Vamos, claro, aceitar a hipótese de os meus lapsos de inteligência e sensibilidade terem condicionado a leitura e podem até perguntar-me quem sou eu para desdizer a maioria, essa entidade sapiente e provedora, dona dos tempos de antena e das colunas de opinião, que se nutre de si mesma e segue à frente para abrir caminho ao pensamento e poupar a gente a esforços demasiados e desnecessários. Sou ninguém. Mas como os gostos se discutem, olhe – se quer um livro sobre velhos que apodrecem em lares, sobre a memória e o corredor da morte, que comove e remexe no pavor de existir sem pieguices, entre com coragem e coração firme no Em nome da terra, do Vergílio Ferreira. Isto só penso, porque na hora em que vou falar, a cobardia amordaça-me e o senhor Pereira, vindo não sei de onde:
– São uma delícia estas conversas das senhoras. Uma delícia.
Mal ele abre a boca e já ela se lhe pendura no braço, gesto de fidelidade conjugal ou reflexo condicionado. O senhor Pereira pergunta-me se está tudo bem, como estão os rapazes, quando vou de férias, porque estou tão branca, tão magra, tão séria. Abala sem esperar respostas e eu fico a admirá-los, as costas muito hirtas, os sorrisos tão abertos, os cumprimentos largos e festivos. Como está, minha senhora? Continuação, senhor doutor. 
Todos envelhecemos, mas alguns, como se lhes fosse prescrita, à nascença, toda a má sorte do mundo, vergam muito antes de a idade o justificar, enquanto outros, porque lhe são concedidos privilégios de ordem genética ou modos mágicos de viver a vida, preservam até muito tarde o brilho e a saúde. Os Pereira envelhecem com teimosia, impõem-se à vida com propriedade e exuberância como se ainda tivessem créditos e recusam-se a desistir antes que as contas estejam todas saldadas. Tiremos-lhes o chapéu porque, apesar de tudo, triunfam.