11.7.24

Há que dar a mão à palmatória e algum mérito às improbabilidades: ao cabo de tanto tempo de espera e esperança, excedendo-se no crédito que deu a histórias e desculpas, olhando a vida com o hábito da generosidade, a rapariga da papelaria ganhou para si o homem maduro. "Ganhar" é modo de dizer, mais concretamente o modo de as velhas dizerem, por serem de uma época em que, ao invés de fluir com os acasos que a natureza determina, a vida queria-se firme e blindada, com amarra e sedimento. Desculpemo-las. A História dos factos explica sempre a dos sentimentos e em tempos que foram de escassez e de juízos morais severos para com as mulheres, ter uma casa, um emprego, um companheiro, enfim, ter, era a maior de todas as vitórias. Quem ganha é dono e quem é dono pode repousar nesse estado sólido, quantas vezes mesmo empedernido, a que por tique eufemístico se chama "estabilidade". 
Adiante. 
Gabi, a manicura sonsa, tem versão menos feliz dos factos. Recordemos – porque há muito tempo não se dão aqui satisfações sobre coisa alguma e é sabido que quem não aparece esquece –  que a rapariga da papelaria se enamorou de um homem casado, maduro nas palavras dela, e que confiou que ele fosse capaz de desatar o nó cego da conjugalidade para ficar com ela. Contra todas as expectativas – ou pelo menos contra a que impera neste blog – ele assim o fez e demonstrou que afinal não era mais um vulgar exemplar da cobardia doméstica, encerrando o casamento que há muito arrefecera na cama e engolia em silêncio as mágoas e as refeições.
Mas Gabi, dizia eu, conta e reconta a história no salão sem resistir a desconsiderar o acontecimento. No vaivém da lima, faz notar o facto de que, embora lhe tenha sido favorável o desfecho da novela, a rapariga da papelaria jamais passou de um recurso de salvação, um fundo de reserva, uma dessas almofadinhas sempre disponíveis onde se encostam aqueles a cuja espinha falta verticalidade. 
– Ele não é por amor que fica com ela, ele é só porque o casamento correu mal e ela estava ali à mão. 
Sim, toda a gente conhece, de cor ou de experiência, casos desses para quem os amores não são fonte de riqueza mas conveniência quotidiana. Se estão à partida condenados ou, pelo contrário, tão habilitados como os outros ao grande prémio da felicidade conjugal, é dúvida que deixo à análise dos especialistas. Importa-me antes lembrar que o desdém de Gabi não é senão a purulência da própria ferida. Porque, afinal, onde estava ela na hora em que o Marco do ginásio precisou de ser salvo dos azares amorosos? À mão. Não foi ela também segunda escolha, recurso? Mas a manicura sonsa é incapaz de notar o quanto revela de nós mesmos a maledicência que aos outros dedicamos. E assim vai mostrando o que vale, muito embora às clientes do salão seja de muita serventia o que a respeito dos outros se comenta, por ser entretenimento garantido a romper o tédio dos dias. 
Cara Gabi, Gabriela no registo, manicura de profissão, maldizente de ocupação: tenha cuidado. Ninguém pode fazer-se de outro e esconder por muito tempo quem, na realidade, é. Nos malabarismos de caráter, ou acabam por cair as bolas ou acabam a cansar-se os braços.