Vivo mal-entendida com o mundo e não tenho interesse absolutamente nenhum em resolver isso. Às vezes adoço, satisfaço-me com desimportâncias como a ordem da casa, as boas palavras desses com quem convivemos de raspão, o sol nascente no quarto, um bolo no forno, um chazinho, enfim, a doçura quotidiana que adormece e cria poesia pálida. Cedo apenas porque não quero que os meus filhos me vejam como as árvores que racham por se oporem demais à ventania. Mas esse bem-estar de pele e circunstância dura pouco, logo recaio no vício da descrença, que, admito, também tem os seus cómodos, facilidades e conveniências.
Então, quando o senhor Pereira vem direito a mim com ânsias de gaiato, a cantarolar Gente que é lá da Régua / não se espera que dê trégua, e me saúda com a palmadinha na face e o olhar daqueles pais que só condescendem por terem também o poder de castigar, penso que talvez seja ingrato, da minha parte, retribuir as pequenas graçolas da vida com relutância e má cara, desconfiar tanto dos tempos de paz e dos esbanjadores de felicidade, recusar-me a falar nessa língua distraída que conjuga sempre os verbos no modo simples do tempo bem passado. Esforço um sorriso que encubra a irritação, digo feliz ano novo, deixo que aperte as minhas entre as suas mãos e, por razão que ignoro e não vale perguntar, ele comove-se. Acho que o senhor Pereira gosta de mim. Mas de um gostar cansado, rendido, que não escolhe mas acata, que é cúmplice no descontentamento, embora oposto na sua causa.