14.12.23

Quando o meu corpo adoece, que ingrato! A vida inteira o amei sem preconceito ou reserva, dei-lhe do bom e do melhor, protegi-o das ofensas, da corrupção e da cobiça dos fracos. Amei o seu cheiro lácteo no princípio de tudo. Amei os joelhos e cotovelos rasurados nas horas vagas da infância, ferida sobre ferida, sem dar tempo à cicatriz. Amei-o desconsolado, febril, vulnerável, com odores de poeira, vento, caramelos, suor, entrincheirado no colo materno, a temer as demasias do mundo. Amei depois, na dúvida, os brotos nuns seios pequeninos a anunciar o tempo difícil de ser mulher e a revelação do sangue vivo entre as pernas, numa tarde de maio. Nessa floração dorida, amei-o com ansiedade e fulgor, escrevendo poemas vagos sobre coisas imitadas aos adultos, que encaixavam, como peças à medida, em toda a minha novidade sentimental. Amei-o orgulhosa, de repente, ao notar que nele despertava uma planta carnívora. E, tal como os pais por amor fazem aos filhos, disciplinei-o e protegi-o de si mesmo, das suas urgências, da desmesura de certos sonhos que de noite eram asas e de dia insensatez.
Aprendi mais tarde a amar o meu corpo também através do corpo amante de outros, entre o temor e a veneração, como se ama os deuses – pelo mistério, pelo absoluto, pela dádiva. E amei-o depois de dar dois estranhos à luz, aturdido, fragmentado e devoluto como gente de fortuna que num só golpe caísse em desgraça. Amei a sua morosa reconstrução, os escombros, os despojos de sangue, a cicatriz no sexo, a servidão total às crias que dele faziam ninho e alimento, ignorantes da violência que lhe impunham. Tão estranho a si mesmo, este corpo mereceu ainda assim o meu amor. Amei-o piedosamente quando foi mortalha de outro e em dobro o amei quando depois tombou coitado numa cama enorme, na mais longa de todas as noites. A respeito do meu corpo jamais disse más palavras ou as permiti. Fascinam-me as suas assimetrias, os seus humores, o seu microscópico labor, a sua autoridade, a biografia dos meus pais e dos pais dos meus pais escrita nele. Amo-o sobre todos os outros, mais do que o dos meus filhos, acima do de qualquer homem. E, sem sentimento de culpa, debruço-me nele como Narciso, não porque o julgue superiormente belo, mas porque o quero superiormente digno.