14.6.22

Duas vezes por mês, a imperatriz vem de Penedono com o menino visitar os avós, mas não é isso que resolve a mágoa do senhor Pereira. O neto em visita pontual, definida por calendário e obrigação, não é o mesmo neto que, sendo herdeiro único do seu sobrenome e beneficiário maior do seu amor, estivesse agregado aos espaços da rotina, aos acasos do dia, às decisões miúdas que resolvem a vida. Este outro Joaquim, a cada quinze dias parece novo. Cresce tão depressa que estira os sentidos e atordoa o coração dos avós, já com pouca ginástica para cambalhotas. É como se, a cada vez, um estranho lhes entrasse em casa e quase é preciso começar do zero o reconhecimento dos rostos, o treino dos afetos, a apreensão das sílabas com que cada um se nomeia: a-vô-Al-mi-ro, a-vó-He-le-na. A piorar, a criança é reservada, ou não tivesse nascido sob essa influência saturnina que dá à gente de janeiro uma certa gravidade – os piegas chamam-lhe frieza – aligeirada ao cabo de largos anos de vida ou com a experiência de um amor sem sombra de dúvida. Pouco permeável a gracinhas, deixa quantas vezes os avós, as tias e até as primas em desânimo por não conseguirem fazê-lo rir com uma lengalenga, um jogo de mãos, um malabarismo. Com os seus olhos de verde aquático, os olhos magníficos da mãe, Joaquim acaba por rir de nada e quando não se espera, ri quando os outros se distraem, ri como se visse o que ninguém supõe que esteja à vista, ri como se tivesse vindo ao mundo pela porta do absurdo, que só costuma abrir a quem já leva uma carga de vidas no lombo ou tem um pé na insanidade.
Mas nem era a minha intenção debruçar-me sobre Joaquim. Já são demais as linhas que, nos últimos três anos, tenho escrito a propósito desta encantadora criança que estilhaçou o universo dos Pereira, revelando um fermento de invejas, rancores e paixões. O que aqui eu vinha contar era do senhor Pereira a dar a curva do pão quente com o peito enfunado, a distribuir boas palavras às senhoras, cumprimentando uma ou outra com mais esmero, interessando-se pelas trivialidades da vizinhança. A mim gaba-me o vestido, os cabelos compridos e arrumados, o livro de poucas páginas, se gastar menos tempo a ler, sobra-lhe para coisas melhores. Pergunta dos meus filhos, emociona-se com as novas que lhe dou do rapaz voador, enternece-se ao saber que, embora crescido, continua de humor robusto o menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno.
– A menina tem sido uma mãe admirável. 
Ao mesmo tempo que me aprumo como se oferecesse o peito para receber a medalha – que tonta! –, forjo a modéstia com filosofia de vão de escada:
– Ora essa, todas as mães são admiráveis.
– Não é bem assim, menina, não é bem assim...
A resposta sai-lhe em esforço, carregadinha de dores. Talvez seja pela lembrança da própria mãe – a velha muito velha a quem Deus esqueceu de dar uns olhos que vissem ternura no mundo –, ou por alguma ideia infeliz sobre as próprias filhas, ou pode até ser que a ferida causada pela imperatriz continue em carne viva no seu peito, sensível à mínima deslocação do ar. Apanhado desprevenido, o meu coração compadece-se daqueles olhos líquidos que a tacanhez apequenou mais do que a idade. Nem sei que diga, como deitar a mão à repentina vulnerabilidade de um homem que, embora jamais me tenha feito mal, desarruma a gente ao seu redor assumindo como seus todos os direitos e toda a razão e dos outros todos os deveres e toda a culpa. Antes, porém, que me ocorra alguma ideia, ele recompõe-se, enfia as mãos nos bolsos e, despudorado, impiedoso:
– Mas, com todo o respeito e cá para nós que ninguém nos ouve, a menina também tem a tarefa facilitada, convenhamos.
– Tenho? – pergunto, medrosa da resposta que há de vir.
Escangalha-se a rir, num gozo infantilóide, quase obsceno:
– Só teve rapazes. Se tivesse tido meninas, nem lhe conto a trabalheira. São o diabo, as meninas, são todas o diabo.
E assim o senhor Pereira me poupa ao esforço de desenrascar paliativos para o acudir. Pelo contrário, despeço-me a pensar nas coisas horríveis que me sinto capaz de dizer-lhe. E em cada golpe que a minha imaginação desfere no seu patético orgulho, invisto toda a minha fúria, verto o supremo veneno das minhas palavras, escancaro as vergonhas que ele nem sonha que sei a seu respeito. Quando dobro a esquina, já o tenho de joelhos na minha mente, embora saiba que, atrás de mim, ele continua ereto e proprietário.