O elevador atende à minha chamada urgente e, ao abrir portas, dá-me o retrato da família de cima: o meu vizinho charmoso e inútil, a mulher que geme à noite debaixo dele como um eletrodoméstico, o diabrete a guinchar como se dez garras de monstro lhe arrancassem a alma, as tralhas que carregam para que mais um dia se cumpra sem imprevistos.
– Cabemos todos, convida ela.
Sorri de modo tão esforçado que me entristece. Digo não e viro a cara, abro a carteira numa busca falseada de qualquer coisa que pouco importa, chave, telemóvel, bálsamo para os lábios. Tenho pudor em olhar, conhecendo a sua infelicidade do tanto que me contam as paredes mal isoladas. Perturba-me ver neles que grande parte da vida que levamos é dedicada à resolução de enguiços. Saciar a fome, tratar a doença, matar o desejo, mitigar a dor, providenciar o repouso, sacudir as penas, esclarecer mal entendidos, enganar a solidão. Não há o que não seja para ultrapassar um problema, evitar um conflito, contornar uma fatalidade. Escapar a uma coisa é, invariavelmente, a causa maior de conquistarmos outra. Ou vice-versa e tanto faz. As paixões, tomadas como atos libertários e libertadores, não são muito mais do que o esbracejar dos sobrevivos. E gestos nobres, de bravura ou abnegação, são só reforço de capital para não morrer na penúria de caráter, no fosso do esquecimento, na indiferença de deus. É assim que se pinta de cores vivas a ordinária flutuação dos dias, o sobe e desce do elevador. E a vizinha tem razão: cabemos todos.