6.1.22

A pandemia lembra-nos, a todo o instante e por todos os lados, a lógica primordial da existência: sobreviver. Como gente desesperada, vulnerável. O que temos é fundamentalmente uma vida de superfície, sem tempo nem espírito para irmos mais fundo e sermos melhores. Temas de conversa afunilados, relógios acelerados, prioridades reorganizadas. A urgência é encarreirar em filas, levar o quanto antes mais uma dose de salvação, enfiar sondas pelas narinas para conquistar privilégios, reclamar com humildade permissão para circular, trabalhar, viajar, visitar, pedir e dar satisfações sobre com quem, como e a que distância estivemos, temer o colapso, a falência, a doença, os outros, e viver nesse cuidado, como a criança que não se mexe para que não a culpem pela tareia que levará de qualquer modo, esperando a palavra do especialista, as conclusões da reunião, o resumo do parecer, esperando que tudo isto passe e nessa espera avançam os dias, as semanas, os solstícios, as doses, as vagas, as variantes, os governos, avança tudo menos nós. O pensamento definha, as ideias murcham, as crenças desatinadas e sem critério conquistam-nos. Ah, como era afinal de pechisbeque a nossa melancolia de dois-mil-e-antes-disto-tudo, que belos números de solidariedade interpretávamos, que conhecimentos inúteis e distorcidos, embora magníficos, impingimos aos nossos filhos! No fundo, resiliência – que elejo como a palavra mais imbecil, obscena e insultuosa do século –  sempre foi a nossa maior virtude, a nossa única virtude. Com os corpos assim a boiar à tona desta surrealidade, haveremos de ir aonde a força da correnteza nos levar. 

(feliz e desinteressada do que acabei de pensar, abandono a farmácia com mais um passe para a liberdade, válido para um jantar, um concerto e uma sessão de cinema, atenção: expira em quarenta e oito horas)