23.11.21

Esta noite sobrevoei o Marão num helicóptero comprado na Worten pelo produtor da minha equipa, que aprendeu a pilotá-lo em três dias com a ajuda do livro de instruções. Por causa do nevoeiro cerrado, a certa altura tivemos de baixar e seguir praticamente na estrada, atalhando por grutas e veredas que nem eu sabia que ali existiam, de uma obscuridade tropical, cheias de humidade, exuberância e venenos letais. Nada disso, porém, me perturbou. O sobressalto deu-se quando vi, com estes olhos que o fogo comerá antes da terra, um grupo de rapazes arrastando pelos cabelos um corpo nu e desanimado. Pedi ao piloto que voasse mais alto, mas a vegetação era já demasiado densa e as fragas estreitavam os caminhos e fechavam cada vez mais o céu sobre as nossas cabeças.
Há quem me considere sortuda por sonhar tanto. De nada adianta dizer que nem sempre o sonho é pera doce, lugar onde se possa estar a salvo ou aventura que impressione. Quem tenha juízo, nem deve aspirar a ter sonhos. É que, uma vez neles embarcando, dificilmente permitem o regresso antes de subjugar o sonhador a um ciclo de agonias e êxtases, em que a dor pode atingir níveis muito reais e prolongar-se na memória por dias vários, mas infelizmente o prazer esfuma-se num ai ou é interrompido no seu mais sublime lampejo. Um sonho é um compromisso que não deixa sossegar, exige coragem e disposição. Eu durmo muito bem, muito obrigada, sem recurso a chás nem drogas, mas durmo demasiado viva. É leviano o desejo de sonhar quando se tem a sorte de dormir como uma pedra, um anjo ausente ou um morto apaziguado.