15.10.21

– Parece impossível, sou mãe há quatro anos mas dá-me a impressão que tenho sido mãe a vida inteira.
Diz-me a rapariga da papelaria a propósito do aniversário de Alicita, a celebrar esta noite com a família, um bolo de unicórnios e uma data de lambarices que em dias comuns são proibidas. Compreendo o devaneio. A maternidade apropria-se da memória e nela semeia dúvidas e cava buracos negros. Tudo o que precede a turbulência do instante em que se dá à luz é pertença de uma pessoa de substância fictícia, que já não sabemos ser. Ter um filho até parece um ato de continuidade mas é um salto para um curso paralelo. O tempo antes da maternidade não é passado, é alternativo.
– Não sente o mesmo?
– Nunca pensei nisso.
Minto sempre muito à rapariga da papelaria e a coitada sem culpa nenhuma. Minto com propriedade e segurança, de costas direitas, como uma senhora, apesar de saber que ao mentir humilho a sua sentimentalidade, reduzo o seu pensamento a uma tolice, deixo-a só, à mercê do juízo desgostoso da própria mãe:
– Valha-te Deus, tanto vento nessa cabecinha.
Mas a rapariga da papelaria sobrevive. Está mais do que habituada a tirar o coração fora do peito em público e a escancará-lo sem apoio, eco ou entendimento. Não se lembra, mas antes de Alicita nascer já era assim. Em boa verdade, foi por isso que Alicita nasceu.