22.4.21

Sentada na soleira da papelaria, de vestido cor-de-rosa como um leque ao seu redor, Alice parece uma florzinha que a mãe tivesse posto ali para alegrar os dias de quem passa. Se é esse o propósito, resulta. A menina dá-se à conversa com toda a gente, não teme estranhos e até embarca nos jogos de faz de conta que as velhas usam para a provocar. De quem é esta menina tão linda que eu nunca tinha visto? Como vive luxuosamente sem máscara, Alice pode exibir-lhes o sorriso, o perfil ordeiro dos dentinhos de leite, o nariz arrebitado à caça de mundo e outros sinais exteriores de riqueza. Quase a cantarolar, responde às velhas que é da avó e, de lá de dentro, o orgulho da rapariga da papelaria não demora a acusar o abalo: como é que é?! o que é que disseste?! Mas a menina só conta três anos, não está para servir de tapa poros às inseguranças da mãe. Interpretar o real e descobrir nele o lugar e a razão dos próprios desejos, deslumbramentos e temores já basta como desafio para a criança que é, não tem de levar às costas a carga de outrem. Então, desvalorizando aquela tosca manifestação de autoridade, volta a disparar sem culpa nem misericórdia: Licita é da avó. E a rapariga da papelaria, que tanto desesperou por um grande amor, um amor com olhos só para ela, que não lhe falte, não a troque, não a use e deite fora, esquece que é mãe e não poupa na vingança: olha, logo não te dou chocolate nem te conto uma história. Mas Alice nem ouve, concentrada que está a sondar o interior do nariz com a pontinha do dedo e a tomar o gosto ao resultado da colheita. 
As velhas apertam os lábios. Querem rir da tolice que precipitou a desavença mas o melhor é não pôr achas na fogueira. A rapariga também é a menina delas, conheceram-na ainda adolescente, viram-na fazer-se mulher, tornar-se mãe, deram-lhe ouvidos e conselhos, estimam-na como aos do mesmo sangue. Vão continuar do lado dela: isso filha, tens de ter mão na catraia agora, senão faz de ti o que quer. O apoio das velhas é quanto basta para a rapariga da papelaria recuperar da estocada. Endireita-se, faz as contas, dá o troco. Há de segurar Alicita, ao menos Alicita.