3.2.20

Muito tempo depois dos acontecimentos, as mulheres ainda continuavam a subir a rua com a dor ao colo e os homens mantinham o hábito de a diluir no tasco em três rodadas. Uns e outros começavam o dia sem acreditar no que diziam: o que não tem remédio, remediado está. Mas diziam e era como se procurassem exterminar um tumor com colherinhas de chá. As crianças eram salvas pela inocência, que as impedia de medir a amplitude do dano. Viriam a sofrer com ele muitos anos depois, ou pela tortura da memória, que quanto mais tarde acorda com mais força se levanta, ou porque o destino, escrito na palma da mão, cobra até dos que supõem fintá-lo ao viajarem para longe, sonharem alto, oporem-se às probabilidades. É espantoso como a dor estabelece contratos individuais. Alguns de muito longo prazo, outros extintos quase na hora com um preço elevadíssimo, muitos exibidos como trunfo ou troféu, quantos escondidos no fundo de gavetas na esperança de que tarde ou nunca se faça o ajuste das contas. E aquele que julga entender da dor do outro ao ponto de presumir ter sobre ela o juízo lúcido, o conselho sábio, o remédio santo, o caminho certo, é só um arrogante a querer enfiar-se, à força e em vão, num traje de solidário.