Que um blog seja fechado a comentários, é-me irrelevante e não vale como critério para a minha fidelidade. Seria demais presumir que ao seu autor importa o que penso ou que o meu juízo acrescenta alguma coisa ao que foi dito e, de resto, parece-me poluente opinar, validar, rebater, questionar ou brilhar sobre tudo o que leio. Mas que não tenha um endereço de e-mail, um canal por onde eu possa – a salvo da atenção gulosa das plateias – agradecer-lhe pela visão que me dá do mundo, isso deixa-me numa ansiedade infantil que, nesta altura da vida, só dá prejuízo e má figura.
15.2.22
14.2.22
Uma semana a pensar em duas linhas que pudesse escrever para ganhar o teu perdão. Que absurdo. Uma pessoa por dinheiro escreve parágrafos gordos de disparates, subverte a realidade em diálogos impossíveis, vende lixo com atributos de ouro, formula teses e racionais de muitas páginas à base de ar, e, no entanto, é incapaz de uma palavra, uma única palavra pela própria salvação. Ah, casa de ferreiro. Habituei-me a manipular as palavras consoante a encomenda e o pagamento, uso-as como ferramenta de serviço em pieguices, parvoíces, politiquices, e faço-o com a distância e o rigor do cirurgião que à hora certa crava na carne o bisturi sem outro sentimento ou sentido além do do dever e no fim lava as mãos e paga as contas. Mas – castigo! – se agora as convoco para a minha própria história, a favor de uma verdade pura, as palavras mal me respeitam, habituaram-se ao jogo, à indisciplina moral, à ausência de escrúpulos. Por isso, olha, de que forma eu haveria de conseguir alegar a minha legítima defesa? Então dito assim é inglório e ninguém decidirá a meu favor: desejar a hora de te ver, importar-me com os teus pensamentos, ter o sono perturbado por essa língua errante e virtuosa ao redor do meu ventre, tudo isso é uma afronta mortal à minha paz.
8.2.22
Sou todas as mulheres deste blog. Quando conto delas é de mim que falo. Não porque desastres, aventuras ou privilégios iguais me tenham sucedido, mas apenas porque não há uma, entre as suas imoralidades, arrogâncias e mesquinhices, que eu possa jurar nunca ter feito, dito ou pensado. Escrevo sem pena ou condenação, escrevo vendo-as da janela, através do vidro onde reconheço o meu próprio reflexo. Em certos dias chego a confundir as silhuetas.
3.2.22
Há um tipo de gente esmerada em lições sobre a arte de viver e disso faz passatempo. Apoiando-se na experiência individual, em episódios de novelas vizinhas ou na bijuteria filosófica, comete essa imprudência – desaconselhada desde que o mundo é mundo – de dar sermão sem que tenha havido encomenda e presumir como se anda ou deve andar nos sapatos do outro. Até pode ser boa a intenção mas acaba inútil o esforço, principalmente quando se é dono de um pé demasiado balofo para as delicadezas do calçado alheio.
1.2.22
A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada esbardalhou-se à saída do pingo doce. Não sei o que se passa com as mulheres das redondezas deste blog, por qualquer motivo anda a faltar-lhes firmeza no passo e atenção às trapaças do caminho. Já o tombo da viúva me pareceu uma bizarria. É claro que tombou com brilho e classe e ainda há de ter desfrutado da inconveniência daquela fração de tempo em que as mãos do senhor Pereira mostraram o vasto alcance da sua generosidade. Não vos escandalizeis com o que digo, a viúva sabe muito bem o que quer, o que faz e o que autoriza e, de resto, há mulheres mais abusadas nas mãos insuspeitas dos seus próprios maridos do que em certos jogos que, só por estarem fora do contrato, são mal vistos.
A professora, porém, não teve a sorte da viúva. O seu corpo descuidado, movido a pastéis, nicotina e comprimidos, sob o comando de uma inteligência que caiu no equívoco de se aplicar muito aos livros e pouco à vida e de um coração que se supõe mais semelhante ao dos poetas do que ao dos seus aprendizes, o seu corpo tombou na hora do almoço de domingo, essa hora que pertence ao reencontro das famílias e à preguiça caseira dos solitários e que, por isso, costuma ser hora morta nos supermercados. Não havia então homem – de sobrenome Pereira ou outro – com a força pronta, levantada, disponível para lhe acudir à fraqueza. Havia, sim, outra coisa qualquer a que a professora jamais chamaria homem e de que se teria afastado caso dominasse absolutamente os seus passos: um adolescente, desses que estão no auge da fealdade, da desproporção e dos maus odores, que caminham como se os membros estivessem prestes a soltar-se pelas articulações e que apunhalam a língua portuguesa amputando-a no essencial e infetando-a com tiques que daqui a cinquenta anos o dicionário será forçado a considerar. Deitou-lhe a mão o adolescente como decerto deitaria à própria mãe. Com muita cerimónia e falta de jeito, mais contrariedade do que empenho, mas deitou. Então ela, inábil na gratidão a esses que não costumam dar-lhe mais do que dores de cabeça e cansaços, tirou da carteira uma nota de cinco euros e disse: toma, compra qualquer coisinha para ti. E com esta oferta a sua alma se teria reerguido da humilhação, não fosse dar-se o caso de o garoto, abanando a cabeça, num é preciso, munt´óbrigado.
O poder é a mais confortável de todas as invenções da imaginação, decide por nós a que serviços, combates, favores e recompensas temos de nos dispor, livra-nos dessa imensa vulnerabilidade que é a empatia.