30.11.24

O viúvo octogenário sem descendência que nada em dinheiro tem sido chamado à razão por algumas quantas boas alminhas, sempre zelosas, no sentido de abrir o olho e se manter esperto quando as mulheres se acercam muito. Garantem-lhe que é próprio delas uma perversa inclinação para as fontes de abundância material e que, para açambarcar o que jorra, dispõem-se a simular estados de paixão assolapada, disfarçando, como atrizes de primeira, a repulsa pela decadência de todo o aparelho da masculinidade quando lhe mudarem a fralda. Tire-se o chapéu a tamanhas artes de representação, pois até os mais inteligentes caem na trapaça e, mortos de amor, entregam de bandeja, primeiro toda a ternura que os seus corações exaustos ainda podem, depois os códigos, os créditos e as contas. Farto dos avisos — e porque não admite que mulher alguma confunda nele a idade com tolice — o viúvo octogenário sem descendência tomou medidas e agora só aceita aproximação de homens. Há pouco mais de uma semana, apareceu na vizinhança deste blog com um que não ia além dos vinte e cinco anos e com isso parece ter aquietado o espírito desta boa gente, porque o facto não deu azo a uma única palavra.

19.11.24

Não há volta a dar: a rapariga da papelaria murcha quando a vida lhe corre de feição, como se a felicidade lhe fizesse sombra. Os doutores da psique e outros que naveguem nessa órbita terão entendimento para decifrar a causa do seu absoluto desinteresse por caminhos solares e sem espinhos, do prazer nas zonas turbulentas do amor. Não os havendo por perto, temos as velhas, sempre tão dispostas a elaborar em torno do mesmo facto durante horas, minuciosas no exame às coisas do espírito, insatisfeitas com versões redondas e acabadas. Eu, embora tenha entrado na papelaria só por rotina, com o pensamento a vadiar e os trocos já na mão para encurtar a estadia, assusto-me com o que para ali vai. Muitas são as acusações que enxovalham a dignidade feminina desde que há vida na terra: delírio, maledicência, inveja, feitiçaria, mesquinhez, manipulação, conluios vários de causas obscuras e outros delitos que – palavra de homem! – desarranjam o mundo. Mas se houver culpa que nos possa ser imputada é a da multiplicação do real. Quando um grupo de mulheres divaga, nada se livra do risco de ser estilhaçado em infinitos matizes e dimensões. A verdade caminha com pernas frouxas, só por gosto, na borda dos precipícios, onde a vista sobre o abismo se confunde com a do absoluto. E é com esse embalo que a rapariga da papelaria atira, muito enfunada, no instante exato em que me devolve as moedas que, por distração, lhe dei a mais:
– Sinceramente, às vezes o amor até dá sono.