Deixe-me ser triste se eu quiser ser triste, mãe.
Acontece a certas pessoas uma espécie de vocação para a infelicidade e se isso não foi ainda validado pelas ciências de laboratório, há de ser pelo menos evidente a quem estuda pelos olhos dos outros, que é onde dizem estar resumida toda a matéria da vida sentimental. Só assim se explica que a realização de um sonho nem sempre remedeie a angústia precedente. Veja-se a rapariga da papelaria. Na vizinhança deste blog, foi sempre a coitadinha, a desgraçada, a desiludida, a preterida, a injustiçada. Durante anos, a má sorte que teve aos amores inspirou os lamentos das velhas e adoeceu os nervos da mãe. Foi também pela sua melancolia tão cândida, crédula e desarmada, que se embeiçou o Marco do ginásio. Nós todos fomos testemunhas enternecidas do seu sonho cor-de-rosa, que nem estocadas, maus prenúncios ou piadas de mau gosto abalaram. E, aparentemente, a rapariga da papelaria triunfou: de abandonada passou a ser aquela por quem abandonaram outra, mostrando-se assim como o destino opera vinganças e ajustes de contas mesmo à revelia dos seus protagonistas e enviando a fatura aos inocentes. Mas então, se é finalmente seu, inteiramente seu, o homem maduro, por que motivo anda ela outra vez de feição murcha, olhos tristonhos, boquinha a transbordar suspiros e tontices?
A mãe atira-lhe à cara: nunca estás satisfeita com nada, nascestes pra chorar o que não tens. Pede-lhe que se alegre por estarem agora, finalmente, as coisas no lugar onde sonhou. Que seja razoável. Mas o grande talento da rapariga da papelaria é ludibriar a razão. É certo que finalmente lhe coube um amor feliz, mas, pensando bem, os amores felizes – que a certa altura se conformam à desinteressante condição de amores bem geridos – não têm história nem fazem cantiga. É o elo precário de um amor difícil, improvável ou trágico que edifica. E, de resto, numa papelaria onde pouco mais se faz além de raspar lotarias, carregar títulos de transporte e dar um jeitinho ao quotidiano com dois dedos de conversa, é urgente um ato de sacrifício. Alguém tem de ousar uma demonstração de sangue vivo e fazer um manguito aos hábitos comodistas, maçadores e vulgares da felicidade.