A cidade perdeu o juízo, está de tripas reviradas, chagas abertas e artérias entupidas. Entre o nascer do sol e muito além do seu poente todas as horas são difíceis. Nos semáforos da avenida, a miséria pica o ponto: sem-abrigo, malabaristas imundos, velhos exaustos que, ao invés de ajudarem, as instituições obrigam a pedinchar. Na baixa, manifestam-se com palavras de ordem as insuficiências de tudo: teto, direitos, dinheiro, esperança, respeito, saúde. De madrugada, à porta das discotecas, os adolescentes fazem correr sangue na calçada por uma ou duas palavras mal ditas, um olhar provocador, um lugar na fila.
Os turistas ignoram este avesso, caminham rente às feridas sem as ver ou, vendo-as, coletam-nas como elementos de identidade e cultura, parte da história que hão de contar no regresso a casa. Aceitam as horas de espera para entrar na que se apregoa a livraria mais bonita do mundo debaixo deste nosso sol viscoso, suado, apreciam a quinquilharia de cortiça produzida em larga escala para o faz de conta do artesanato e da genuinidade, enternecem-se com a velhota desdentada que se presta à fotografia só a ver se o dia melhora e com o estendal de rua onde coram os lençóis vincados da insónia e do cansaço. Em fuga acelerada da própria desgraça, dos grilhões do quotidiano e do medo de morrer antes de tudo ter visto, coitados, mordem todos os iscos. De passagem não se tomam as dores dos lugares, à luz da novidade tudo é adorável, benigno, curioso. E, de resto, para a ruína inventar-se-ão sempre eufemismos, seja a ruína das cidades, seja a ruína dos povos.