Em pequena, gostava de ler o dicionário freudiano de interpretação dos sonhos, livro que apareceu entre a vasta e eclética biblioteca do meu avô materno. Por muito tempo eu e as minhas irmãs tivemos o hábito de consultá-lo quotidianamente, na esperança de decifrar os enredos que, dormindo, fabricávamos. O livro satisfez as curiosidades apressadas e momentâneas, mas não a sede de entendimento. O mundo dos sonhos permanece para mim um mistério e nada do que diga a gente das ciências da psique – das exatas às ocultas – me contenta. Na semana passada, por exemplo, enamorei-me de um homem quadrado e dediquei horas a lixar as suas arestas para que ele pudesse amar-me sem me magoar. Ontem, perdi no aeroporto um cachorrinho que uma amiga me confiara dentro de um saco de compras do continente. Hoje, comecei a trabalhar como estafeta numa fábrica de pantufas. Em certas noites cometi crimes sórdidos, com gozo e violência, sem arrependimento, para fazer cumprir uma justiça em que cegamente acreditei. Mas, no meio de tudo, o que é realmente curioso é que, tantos anos depois, a minha subconsciência continue a inventar alternativas à tua morte. Entras pela casa como se fosse território do teu domínio e justificas a ausência com razões que a cada noite mudam: uma reunião de trabalho que se complicou, uma volta ao mundo decidida num repente, outra mulher, outra família e, às vezes, de caráter transfigurado, muito azedo, insolente, dizes que é que foi? que queres? deixa-te de merdas, fui só ali num instante. Parece impossível que, noite após noite, continues a repetir a estocada. E que, para te manter vivo, eu seja capaz de inventar tudo, até o que o meu coração jamais suportaria.