28.9.23

Enquanto Alicita me relata os primeiros dias na escola dos crescidos, a rapariga da papelaria dedilha no telemóvel com um empenho amoroso e a face toda iluminada. Do outro lado do ecrã está certamente o homem maduro, pois que mais nada além de um romance novo – e com o bónus de ser proibido – deixa as feições naquela suspensão extática. A espaços, a menina lança-lhe apelos, pede validações, precisa de ajuda para responder com rigor às perguntas que lhe faço. 
– A minha 'fessora chama-se Eugénia, não é, mãe? Mããããe...
A rapariga confirma sem levantar os olhos do ecrã, é isso, minha florzinha, investe novamente a dedilhar, vai sorrindo com um ar de quem lembra travessuras de infância e tem ganas de as repetir. O enamoramento tem sempre a mesma expressão, das feiras de subúrbio aos salões de chá da marginal revela-se com os mesmos verbos, o mesmo traje, a mesma embriaguez, o mesmo caráter ardiloso. 
Alicita está grande. Há muito que o colo da mãe deixou de lhe servir, mandou às urtigas a austeridade da avó e, com as velhas, ela tem a arte de namoriscar docemente, de modo a que se se aliem a ela. São difíceis as guerras que se travam na vizinhança, o que a vida dá de prémio ou castigo ali se experimenta e aprende a cada dia e Alicita vai-se preparando para a conquista do mundo entre o balcão da papelaria e a porta de casa, ensaiando alianças, provando limites, subjugando à sua a vontade dos outros. É fácil de ver que supera a mãe em astúcia e perspicácia, dificilmente se deixará manobrar por mãos alheias, muito menos cairá no engodo de promessas cor-de-rosa.
– Menina mais linda. Dás-me um beijinho, que eu logo trago-te um saquinho de gomas?
Assim nos interrompe a cabeleireira, de passagem para o seu posto de trabalho. Alicita recua sem disfarçar a dúvida sobre a pertinência daquele negócio. 
– Não gosto.
A rapariga da papelaria desperta. Num gesto brusco arruma o telemóvel no bolso traseiro das calças e assenta os pés na terra com estrondo, nem reparando como se assemelha à própria mãe:
– Isso são modos de responder, menina? Quer ficar de castigo?
– Eu é que sei se gosto ou não gosto!
E a menina lá se deixaria intimidar pelo tom de voz da rapariga da papelaria? Inúteis são as ameaças, os gritos e outros esboços trapalhões de autoridade. Qualquer criança reconhece uma mãe débil e insegura e, ainda que possa temê-la e submeter os hábitos à sua disciplina, jamais confiará nela o suficiente para seguir os seus conselhos e muito menos os exemplos. A cabeleireira apressa-se a distrair mãe e filha do litígio e a remendar o mal, oferecendo então chocolates já que as gomas não agradam. Na volta da escola a menina que passe lá no salão a buscar, até às oito as portas estão abertas. Mas Alicita fecha a cara, cruza os bracinhos, ganha distância e pose de uma princesa de gelo.
– Não. Eu não gosto é de beijos.
Ignoro em que equívoco, precipitação ou palavra mal dita possa ter descambado entretanto a troca de mensagens entre a rapariga da papelaria e o homem maduro. Mas alguma coisa a endemoninhou porque, ouvindo a sua menina responder assim, assentou-lhe cinco dedos na cara. Apanhada de surpresa, a menina arregalou os olhos, ruborizou mas não se lhe ouviu lamento algum. O troco, deu-o em voz baixa, firme em cada sílaba: burra! burrinha!
E é assim, numa manhã fresca de setembro, quando o calendário promete renovação, quando se sobem degraus, se anunciam mudanças, se retomam contactos e a natureza se dispõe a acolher outro ciclo, é assim que vemos como, apesar de tudo, nos filhos se perpetuam os erros dos seus pais. 

21.9.23

Mariana casou esta noite com um vestido rodado de inspiração campestre, em linho branco e bordados azuis no peito e nos punhos. Quando apareceu para a cerimónia, saltei-lhe para o colo, ela segurou-me e largou a rir, não sei se dos nervos se do gosto de nos reencontrarmos. Desejei-lhe felicidades e pedi desculpa pela minha arrogância, que não me levasse a mal pois se às vezes falo de cima e de longe não é senão para impor respeito às minhas próprias debilidades. Contava que ela fizesse o mesmo, que singelamente dissesse oh, qual quê, eu também sou uma arrogante de primeira, perdoa-me tu também. Então comover-nos-íamos juntas e nesse instante mágico nos tornaríamos amigas até ao fim dos tempos, contra provas, provações e intempéries, pois agora unidas pelo mesmo vício de caráter. Mas Mariana não foi outra que não ela. Como se visse em mim uma criatura esfaimada de afeto ou alguém a merecer condescendência, passou-me a mão nos cabelos e tudo bem, deixa lá, já passou.
Acordei sem lhe ter esmurrado a face, sem lhe ter rasgado o vestido, sem lhe ter revelado o que nas costas dela me disse o homem que a esperava no altar. Estou a tornar-me cada vez mais pacífica quando sonho. Nota positiva para a índole da minha subconsciência.

19.9.23

É de louvar o civismo com que nos toleramos uns aos outros no quotidiano – descontemos as crianças e os doidos. Nós, gente que por imperativo de sobrevivência toma o seu papel na manutenção da ordem, com quanta arte dominamos o fervor da nossa humanidade! As sombras, as raivas, o amargo de certas memórias, o gosto ferroso dos sonhos abortados, os compromissos vagos e sem grande propósito, as vitórias esquecidas assim que celebradas, o corpo que carregamos com os fermentos silenciosos da morte e sob a autoridade das coisas primordiais – fome, sede, sexo –, os receios, as mutilações, as contas de subtrair, a ideia de que o outro, sempre o outro, é autista e estrangeiro, toda esta inflamação sentimental que a cada noite se excede, a luz do dia vem generosamente aliviar. E mal nos olhamos ao espelho, com mais ou menos consideração por quem nos tornamos, escolhemos sair de casa com bons modos – amiúde menos bons mas nunca tão maus quanto em verdade nos sabemos capazes – para entrar nas filas, cumprir as tarefas, fazer os cálculos, pôr os vistos, pagar as taxas, dar as esmolas. Às vezes entredentes uma praga, um insulto, uma ameaça, mas não é nada, logo passa, ora essa, vamos andando, desculpe lá, isto resolve-se, temos de ser uns para os outros, não tem importância, a vida passa a correr.  

18.9.23

Lamento por todas as mulheres que sonharam – e mereciam – homens de espírito elevado e acabaram a contentar-se com os bem educados e trabalhadores. É uma forma de fracasso como outra qualquer mas que, felizmente, ninguém nota. 

12.9.23

O senhor Pereira maldiz a mãe do neto Joaquim que, num assomo de calor e cansaço, desbastou toda a sua cabeleira de fogo e apareceu com um ar andrógino. Levanta-se no espírito do patriarca a suspeita de que a imperatriz possa estar a aderir a essas modas de mudar de sexo, ou de género, ou de genitais, ou de gostos, ou seja lá o que isso for, com todo o respeito, menina. É claro que se trata apenas de um corte de cabelo, uma inocência, uma singeleza, um ato mais ou menos rotineiro, sem narrativa ou entrelinhas, mas cada um atribui às simplicidades da vida alheia o peso dos seus próprios fantasmas. Não fica nada bem às mulheres quererem imitar os homens, não acha a menina? Pergunto-me se o senhor Pereira diz isto a recordar a lendária tareia que a própria mãe terá dado ao marido e concedo: imitar os homens não é, jamais foi, boa ideia. 
Por outro lado:
– O meu filho tem muita sensibilidade. O que esta rapariga lhe fez não se faz a ninguém. 
Conta a mulher do senhor Pereira que o seu benjamim sofre de muitas partes do corpo com pruridos, moinhas, tremores e outros desconfortos vários sem diagnóstico, e que a sofrença se agrava quando a imperatriz vem de visita com o menino. Do estrago que ela fez à alma do coitado talvez ainda por muitos anos ele padeça e por isso é um rapaz mole e indiferente, a quem é preciso ir dando uma mãozinha aqui, um conselhozinho acolá, de modo a evitar que tornem a abusar da sua bondade. Não lhe bastasse a tirania das irmãs, que passaram a infância e a adolescência a jogar com ele como se fora um boneco, ainda foi sucumbir ao feitiço de uma ruiva da parvónia que levanta o queixo muito acima das suas possibilidades. Pensa que é superior aos outros, atira a mulher do senhor Pereira, sem notar que ao julgarmos alguém por se supor mais do que é, não estamos senão a supor-nos mais do que somos.
Dois dias depois da conversa, vejo a imperatriz a seguir devagar com Joaquim pela mão. Como é hábito, vai a cantar-lhe canções que a generalidade das mamãs, por subestimar o intelecto das suas crias, consideraria impróprias: when she was young she was a cow and all day long she milked the stars, she taught me women to survive must be unfaithful to their child. Nada perdeu em classe, nem teria esta mulher como perder o que por natureza e vocação lhe pertence e está para além de todas as coisas que use ou desuse. Com ou sem a cabeleira de fogo, é francamente bela e esperta o bastante para dominar os Pereira. Continuem a portar-se como cães mansos e pouco importará o que rosnam mal ela vira costas. Que causas, vontades, delírios ou transações a terão harmonizado com o Pereirinha ao ponto de conceberem um filho – eis o maior mistério da vizinhança deste blog. Mas qual de nós, na certeza de que jamais se distraiu a comer do que não presta, vai atirar a primeira pedra?

11.9.23

Desperto, por coisa nenhuma, àquela hora da noite obscura e surreal em que as más decisões são tomadas e em que cada rumor levanta a suspeita de uma tragédia. Num ápice, suponho desacatos, acidentes, crimes que à luz do dia, bem sei, se tornarão risíveis. Como são grandiosos os favores que o medo presta à imaginação! E esta, por sua vez, devolve em dobro, enredando-se ambos numa das mais cúmplices e frutuosas ligações que a mente humana apadrinha.

3.9.23

Que ternura benfazeja, que sopro de esperança, que alívio de alma este mês de agosto. Por tão pouco esperar dele, atribui-lhe os direitos e deveres de um quotidiano vulgar e fui andando. Porém, em tudo agosto se superou. Entrei nele a arrastar-me com preguiça e má vontade e cumpri-o, afinal, como uma bailarina de trapézio.