Das coisas que por amor nos dispomos a fazer, já muitas histórias rezam e não há de ser esta a engrossar o rol. Parte delas são rasgos de heroicidade, fazem crer que a paixão alcança os impossíveis e por isso são aplaudidas, elevadas, versejadas, prolongando assim a doença do romantismo. Mas outras histórias há, menos felizes, que precipitam os seus protagonistas num vórtice de indignidades, orientadas por esse nobre valor a que se chama esperança e em nome do qual toda a sujeição se toma por legítima. Destas, infelizmente, se fala agora na papelaria pois o novo amor da rapariga, pleno de bons augúrios e abençoado pelas velhas, revelou-se, afinal, uma armadilha. Em armadilhas já todos caímos, é verdade, e quantas delas montadas em lençóis alvos, insuspeitos, sem vinco a apontar: Mas o caso da rapariga da papelaria agrava-se porque é tão grande nela o medo de morrer solteira e desconsiderada pelo mundo, que se entrega sem cheirar o perigo. Só num coração livre de medo pode funcionar a intuição.
O caso conta-se em duas linhas e dá mais pena a banalidade que é do que a infelicidade que trouxe. O homem que vinha alegrando os dias dela, a pessoa madura, afinal é um marido enterrado até ao pescoço num lar de família. Desses que, por suspeitar de um desvario da mulher e por esta se encontrar ausente por mais tempo do que o razoável, correm logo a garantir-se entre outro par de pernas, não vá o diabo tecê-las e deixá-lo morrer de todas as fomes. Se para cada panela se diz haver no mundo um testo, certamente que para cada patife há pelo menos uma tontinha. E não é a rapariga da papelaria a mais perfeita?
Gabi festeja. Vê desconstruir-se diante dos olhos do Marco a imagem santificada da sua rival e esse é o melhor desfecho para a disputa que o seu coração – também medroso e por isso imaginativo – inventou. Meter-se com um homem casado – ah, não me venham dizer que ela não sabia porque uma mulher sente, uma mulher sente! – é a prova de uma falsidade sem tamanho, é falta de tudo!, diz entredentes no vaivém da lima. Falta de decência, falta de respeito, falta de juízo, falta de esperteza, falta de caráter. No salão, ninguém trava a língua de Gabi. Quem resiste a um carrossel de maledicência? Só a dona Maria Isabel (há quanto tempo!):
– Evite ser demasiado moralista, menina, que aumenta o risco de darmos consigo precisamente entre os imorais.
– Não percebi.
No meio do desastre, só as velhas lembram que enquanto há ternura há esperança.
– Dona Fatinha, a sua filha deve ter mau olhado. É a única explicação.
Comovi-me com o veredicto. Estas velhas, tantos anos de roda da papelaria, a raspar o sonho dos milhões que nunca saem e a ver aquela doce rapariga crescer, desgostar-se e dar à luz, como haviam de a ofender, tomar por estúpida ou colar o triste rótulo de amásia? Não, elas têm outro diagnóstico e assim mantêm intacta a inocência da sua menina, para quem o destino tem sido um burlão de primeira. Há muitas formas de ser generoso para com os erros dos outros. A cegueira de faz de conta pode não ser a mais certa, mas há horas em que é a única possível.
Dona Fatinha não abre a boca. Anda como um fantasma, perdeu o fio da meada dos dias, descuidou o cabelo, só aparece de tarde na papelaria. A filha precipitou-lhe a velhice, já só espera dela o golpe de misericórdia.