Soa-me estranha essa maneira romantizada, eufemística, de tratar os mortos dizendo que desapareceram, partiram ou já não estão entre nós – sei lá eu se estão e apenas não tenho olhos de os ver! Uns, apavorados da própria finitude, talvez creiam que o que não é nomeado não é invocado. Para outros, ignorar a ideia substantiva da morte e o seu par de sílabas concretas pode ser a única forma de lhe recusar o exercício de autoridade sobre os Homens. O que nos é impossível dominar com a ciência, o dinheiro ou a violência, forjamos pela via do verbo.
31.8.22
28.8.22
Não seria de esperar que me custasse cada vez mais suportar as conversas à roda da sabedoria e de outras grandezas da maturidade. São tão férteis em clichés os que falam de cima e com desdém sobre os mais novos, esses que estudaram, trabalharam, casaram, fizeram filhos, multiplicaram-nos por netos, criaram raízes, nutriram bolores, e são agora proprietários de casas, saudosismos, arrogâncias, poupanças, segredos, arrependimentos e ossos fracos. Além de cansaço, o que dão a mais o tempo cumprido de rotina, a voluntária escravatura, a dobra nas costas, as faturas todas pagas no prazo? E mesmo os livros lidos, os consumos pagos de cultura e espetáculo, a dedicação às religiões, os carimbos no passaporte, um ou outro prémio ganho por qualquer coisa em breve esquecida, e até os delitos praticados, as dores provocadas e sofridas, quão mais perto do absoluto e da razão nos levam? Os miúdos de agora, que tristeza, dizem. Tristeza é não haver mais o que fazer com tudo o que se tem a ilusão de ter aprendido e, só porque a marcha vai agora mais lenta e está mais perto de findar, rir dos que ainda vêm lá atrás aos tropeções.
26.8.22
Às vezes – raras vezes – dou comigo a julgar que tenho uma certeza. E ter uma certeza, pese embora a insanidade e o equívoco, pode ser a diferença entre pasmar ou dar um passo em qualquer sentido. Infelizmente, ainda antes de dar o passo, esboroa-se em três tempos a certeza porque logo me ponho a analisar todos os matizes do seu reverso. Pensar é um hábito muito civilizado mas está longe de ser uma boa estratégia de sobrevivência.
20.8.22
Lígia, a mais velha das manas Pereira, está a aquecer os nervos para a maratona do próximo ano letivo. A decisão de retirar a sua menina exemplar à guarda do colégio privado que desde os três anos tem sido segunda casa para a largar numa escola pública, pede-lhe uma musculatura emocional nova, resistente aos próprios temores e às opiniões alheias. Mordiscam-lhe já a alma culpas que jamais havia sentido e, entre todas, a pior é a impressão de estar a abandonar a filha. O resto da família só desajuda. Cutucam-lhe as sensibilidades listando toda a sorte de misérias do ensino providenciado pelo Estado, a começar pela incompetência técnica, passando pela anedota das atividades extracurriculares e pela duvidosa qualidade da alimentação e indo, por fim, desaguar ao que lhes é verdadeiramente importante: a exposição a perigos oriundos de certas zonas cavernosas da sociedade, onde a doutrina do vício, da insurreição e da linguagem ordinária é absorvida desde o ventre das mães. Há necessidade de tirar a menina de onde está, se está tão bem? É dinheiro? Que diga, pois isso é o de menos, insistem os avós Pereira. Não, não é dinheiro. Lígia, embora assustada de morte, tem uma convicção que seria comovente se não se tratasse de uma vulgar snobeira, uma bagatela da sociologia do salão de chá:
– Quero que a minha filha tenha contacto com todo o tipo de pessoas.
Pobre mana Pereira, tanto esforço para maquilhar a mediania da inteligência e a ligeireza do caráter, tanto tempo a estudar modos vários de ter opinião própria em workshops e livros de venda fácil, e é isto. Supondo que existe aquilo a que chama de "tipo de pessoa", perguntamo-nos a que tipo terá ela a ilusão de pertencer? Pobre mana Pereira, que atravessa as noites de insónia a cismar nas decisões mínimas do quotidiano, ponderando o peso que cada palavrinha dita ou por dizer terá no futuro da filha, esquematizando os caminhos – e incluindo os atalhos – que desembocam no êxito ou na infelicidade, na grandeza ou na delinquência. E à sua alma confusa, que se distrai na superfície das coisas, não ocorre que estes não sejam destinos alternativos ou opostos, que o mundo pode ser, afinal, um sarilho de sobreposições, uma infinidade de matizes, e que dentro da alma de cada "tipo" que se mostra, há centenas de outros "tipos" que se calam ou morreram, por acasos, no caminho. Sossegue, Lígia, pois onde quer que a sua menina esteja, está invariavelmente com "todo o tipo de pessoas".
18.8.22
Sempre pensei a inveja como uma besta sórdida e rasteira a que a minha superioridade moral não vergaria. É, entre os pecados capitais, o único que não tem como aparentar graça, charme, fibra, desafio, convicção, energia, nem mesmo visto sob o toldo de um estado de enamoramento ou com recurso a eufemismos. Até conheço, com mais ou menos vergonha, o gosto encorpado da soberba e da avareza, assumo os ímpetos cegos e eletrizantes da ira e da luxúria, demoro nos prazeres da gula e da preguiça, a quem poucos negam simpatia. Tenho, como prova da minha humanidade, vontades alimentadas à boca por todos os pecados. Exceto a inveja. Invejar porquê, se toda a medalha tem no reverso gravuras de dor, perda ou desalento? Um destes dias, porém, talvez porque me tenha apanhado sem ocupação de valor ou distraída das coisas fundamentais, a inveja cravou-me os dentes em cheio na razão e pôs-me a correr no sangue esse veneno perverso, que inebria, revira os olhos, sorri pela frente e maldiz no escuro. Lutei contra ela a noite inteira, implorando a minha lucidez de volta, e da batalha sobrou uma desarrumação tal que ao levantar-me pela manhã tinha perdido os pontos cardeais e a firmeza de pisar o solo. Confesso-me assim sem receio de ser julgada porque uma pessoa – qualquer pessoa – tem sentimentos e entre tantos que tem, há sempre alguns que são como os filhos degenerados: uma vergonha para a qual se inventa mil histórias que desculpem.
12.8.22
Finalmente agosto entristeceu nas ruas da cidade. Agrada-me estar por cá nesta altura, há silêncio e suavidade no ar, ninguém está interessado em grandes resoluções e as pressas são injustificadas. Na avenida, manhã cedo, paira uma névoa doce que me lembra o feliz veraneio da minha infância. Revejo-me de mão dada com a minha irmã mais velha em direção à praia, ela a cantar a Valsinha e eu a sonhar os meus legítimos sonhos sobre um par de pernas bailarinas.
A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada passa o seu agosto na resignação costumeira. Desce a alameda a arrastar-se como um animal velho, indisposto às caçadas, sem mais vocação para a sobrevivência. Ainda não foi desta que se meteu num avião para visitar o rapaz em Barcelona e também não consta que ele venha suar os calores do estio nos braços da sua mãe. Há de vir pelo Natal, diz ela todos os anos. E o gesto que faz com a mão imita o das pessoas compreensivas e relaxadas, mas é na verdade tão dorido como o de qualquer desgosto de amor. O rapaz é bom filho, toda a gente sabe. Mas é jovem, tem ganas de espaço e liberdade, vai adiando a mãe porque a mãe é certa e segura, pertence-lhe, já foram corpos de um só corpo, não a concebe morta ou indisponível. Talvez um dia, quando a separação se der definitiva, sofra a culpa de tão longas ausências.
– Caramba, Barcelona é já ali, num instantinho a sôtora se põe lá. – diz-lhe a cabeleireira, sempre com ganas de pôr a girar os carrosséis da vida. Mas a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada tem direito ao desalento e à concavidade do sofá. Tem também direito a fingir que a sua solidão adoentada, suja de pastéis, nicotina e ansiolíticos, tem os brilhos charmosos da independência.
– Andar práqui e pracolá não é do meu feitio. Quem me tira o meu sossego, o meu cantinho, os meus livros, tira-me tudo.
– E vai deixar agosto fugir assim... – lamenta a cabeleireira, ansiosa que lhe perguntem em que praia vai ela torrar o corpo, frente e verso, durante a próxima quinzena.
Mas à professora, para quem os dias, as semanas e os meses se sucedem sem grande propósito, como contas de um longo e penoso rosário, à professora agosto não foge, só se converte em setembro.
8.8.22
Durante a vaga de calor, os meus sonhos noturnos alcançaram o cume da malícia, da desgraça e da glória. Intermitentes e transpirados, enredaram e desenredaram compulsivamente como certas maneiras de narrar que desprezam os rigores da forma para (ou por) efeitos de atordoamento mental. Esqueci-os entretanto quase todos. Não durmo com lápis e papel à cabeceira, embora saiba que das viagens do inconsciente se pode extrair matéria preciosa para fins diversos e quase sempre úteis às artes e à ciência. Só lembro ainda bem, talvez pela estrutura coerente – a memória engata melhor na lógica do que no absurdo – aquele em que a minha amiga Eduarda decidiu voltar para a terra das auroras boreais. Veio despedir-se de mim de madrugada. Dentro do carro, o marido ao volante, as crias chorosas aninhadas no banco traseiro, ela apressando o abraço, depois os acenos, temos de ir, temos de ir, e tudo no seu rosto era pavor e desespero. Não foi a partida dela que me angustiou, somos já habituadas a esta forma de amizade. Foi o breu e a ideia de que a emigração, repetida pela segunda vez na sua vida, não mais era um projeto ambicioso, mas antes uma fuga, uma urgência, um ato clandestino. Qualquer coisa os perseguia com ganas de besta selvagem, qualquer coisa como um colapso, uma miséria, uma vergonha, um crime, um país faminto a chupar até aos ossos a dignidade dos seus filhos. Mais um sussurro pela frincha da janela, adeus, e o automóvel arrancou. A noite abocanhou-os num tumulto de poeira e vento, primeiro engoliu as formas, pouco a pouco a luz dos faróis e finalmente o ronco do motor, até a solidão, por demais aflitiva, me despertar. Mas é sempre tão demorado e difícil o tempo que as impressões dos sonhos levam para se desprenderem do corpo!
4.8.22
Não ter televisão nem perfil nas redes sociais torna-me beneficiária dos esforços e da piedosa atenção de muita gente. Há uns anos, um rapaz de uma operadora perguntou-me se eu não gostaria de conhecer o incrível privilégio de me estender no sofá ao fim do dia a ver umas noticiazinhas ou um programazinho de entretenimento, sem pensar em mais nada. Fiquei sem fala. Para muitos, aderir, estar e ter são direitos que só por ignorância não se aproveitam. Supõem-me uma retardada, mas é recíproco. Porque para mim, precioso e consciente é o direito de recusar.
3.8.22
Não me causam ciúme, fascínio ou pena as coisas anteriores a mim na tua vida. Sobre elas não perguntarei detalhes, formas, colorações, relevos, menos ainda causas e consequências. Dispenso ouvir as tuas dores, que já as minhas bastam nas rugas do corpo e do lençol. Sei que o lamento dos homens costuma enfeitiçar o coração de mulheres impressionáveis, porque mascara às vezes muito bem os cobardes com o estilo profundo dos sensíveis. Pois a mim só me importa a tua superfície: a pele em toda a amplitude, a temperatura favorável, o sangue a acorrer ao lugar certo, a navegação amorosa, a ternura breve e inócua da manhã seguinte.
2.8.22
Mais tarde, depois de as velhas dispersarem e de a mãe sair para apanhar Alicita na vinda da colónia, a rapariga da papelaria toma o pretexto de um assunto menor para me falar. E, por qualquer razão que me escapa, como se alguma culpa a consumisse, lança-se de repente a explicar.
– Os homens da minha idade são muito infantis, não me interessam. Este é uma pessoa madura.
Satisfações, sei lá eu por que mas dá. Suponho que ande em busca de quem não lhe aponte a cama onde deva deitar-se só porque tem de ser ou devia ser ou seria melhor que fosse ou isto e aquilo. Não a noto mais leve ou feliz, o que me leva a duvidar da conveniência deste novo amor. Continua vaga, ausente e desambiciosa, como habitando um sonho onde tudo é decidido por ventos e casualidades. Admito que essa melancolia obstinada tenha o seu encanto e por algum motivo o Marco do ginásio ainda pasma defronte da papelaria, sem se importar que os olhos da manicura sonsa reparem no delito. É um homem banal, vive com ganas de derrubar muralhas e quanto mais altas e firmes, mais forte é o ímpeto pois daí lhe virá maior impressão da vitória. Infelizmente para ele, devolver à vida uma alma que por vício e conforto é desiludida requer trabalhos de outra ordem. E nem sempre aquele que tem musculatura para abater o obstáculo a tem para sustentar a consequência. A rapariga da papelaria sabe-o e por isso nunca olhou para ele por mais tempo do que o necessário às contas e trocados. Agora, quem lhe restitui a esperança numa vida que caiba no senso estreito da mãe, das velhas e do seu próprio romantismo – cheios de boas intenções mas nem por isso razoáveis –, é, portanto, uma pessoa madura. Falta-nos só saber como se define tal figura no dicionário de uma tontinha.