29.12.21

Interessa-me muito o lixo que os outros fazem. E quanto mais belo e perfumado é o saquinho em que o descartam ou mais engenhoso e debruado é o tapete para onde o varrem, maior é a gula com que me atiro a ele.

20.12.21

Faço-te versos enquanto limpo as portas dos armários da cozinha. A dar aos braços imponho o ritmo e a métrica, sai-me tudo com naturalidade, três, quatro, cinco versos de uma assentada, e repito-os várias vezes em voz alta para os ter de memória quando puder trocar o esfregão pela caneta. Neles celebro a tua língua doce e criteriosa, que não é de poeta, gigante ou herói, é de gente suja e cansada dos dias banais, que se vende e se compra, a quem a alvorada dói nos olhos, mas que sabe, como ninguém, fazer correr os rios em leitos adormecidos. Resultam, porém, os versos frouxos, espumosos, embotados, nada que se compare ao brilho com que deixo as portas dos armários.

15.12.21

Ao fim de semana ocupo-me a lamber as feridas do rapaz voador, enquanto ele conta histórias sobre os dias da sua ausência. É um bom narrador, afia todos os detalhes, imita as vozes, deforma-se, faz-me sonhar, distrai-me das horas, da sopa, do assado, da torneira que pinga. Sempre soube que ele havia de ser como é. Tão cuidadoso a nascer, não me causou dor nem dano, porém, ao invés do irmão, que ao primeiro sopro se agarrou a todas as partes do meu corpo como um bichinho desamparado, este olhou-me com condescendência e profundidade e eu vi, juro que vi, a malha enredada dos seus pensamentos, o voto de lealdade, as ganas de lonjura e adrenalina. Tenho-lhe este amor espantado e ansioso, escolhê-lo-ia entre milhões, ainda que nem uma gota do seu sangue fosse minha.

10.12.21

O presidente da CCDR-Norte, trapalhão, a derrapar no esforço de formalidade que vem com o pacote mofento de certos cargos, comentou as celebrações dos vinte anos sobre a classificação do Douro Vinhateiro como Património da Humanidade. Diz ele, como quem dá merecida esmola, que os festejos e eventos a propósito serão centrados nos durienses, autores da paisagem e da história. Mas quando a repórter lhe pede que levante um pouco o véu do programa, ele salienta, como pontos altos de tão dirigida homenagem, uma ópera e uma prova de ciclismo. Sendo estes os pontos altos, valerá saber como serão os baixos? Que mais tendes, senhores, para honrar a minha gente, o seu chão, o seu xisto, o seu sangue, que pague o preço das cheias, dos naufrágios, das geadas, das baixas, dos infernos? Tertúlias literárias por convite? Passeios de charrete e barcos carregadinhos de tias e tios espantados lá do sul? Cocktails gourmet a servir nos tachos das comissões organizadoras?
O Douro e os durienses são os eternos beneficiários do paternalismo dos engravatados, que em gabinetes obscuros, de solas por raspar, fazem o jeito de os elogiar com palavras fáceis, preguiçosas e parolas como "resiliência" e lhes agradecem com circo, fogo-de-artifício e palmadinhas nas costas. Vai-lhes seguindo o exemplo o país inteiro e certo tipo de gente que nunca diz que não às tendências nem resiste a uma boa selfie junto a citações épicas gravadas em miradouros. A capa da Visão desta semana chama-lhe "joia de Portugal" – é uma pena o cliché, mas por certo o repórter saberá que, cá entre nós, só o que brilha costuma interessar. 
Ao Douro, fora as multidões, tudo chega tarde, de favor e em segunda mão.

8.12.21

Constroem-se como personagens, vestem-se de sarcasmo, ousadia, atrevimento, liberdade, fervor sexual, vontade férrea, generosidade acima de tudo, porque na realidade quotidiana, mansos como cordeiros, mudos como paredes, incrustados como penedos, engolem todas as verdades que por dias nebulosos e noites em claro ruminaram e submetem-se sem uis nem ais à penosa rotação da terra. Bendita a fantasia que salva do tédio dos dias.

6.12.21

Dá-se o caso, já várias vezes aqui sugerido, de o meu vizinho ser um homem atraente e daí vir parte da minha implicância. Aborrece-me que a imaginação alheia, tomando a boa figura como bitola, esteja a léguas da realidade frouxa e incompetente que ele é como pai, marido e amante. Vestiria melhor nele um aspeto vago, um passinho nervoso e miúdo. É das páginas aprendidas ainda na infância que a feição e a essência em muito – senão em quase tudo – discordam, mas não é por as coisas serem por demais sabidas que deixam de ser ardilosas. Antes de nos enamorarmos de alguém, devíamos poder encostar o ouvido à parede da sua casa.