29.7.21
27.7.21
Não havendo reviravolta ou imprevisto, é em setembro que Joaquim e a mãe abalam para viver em Penedono. Como os Pereira são desses que gastam o tempo do luto a maldizer a morte, negam-se à conciliação com o inevitável e a cada dia fecham mais o riso, inflamam mais a ferida, cavam mais o fosso. Que tortura imaginar o neto nas rotinas provincianas, sujeito a mil descuidos e doenças, sempre com odor de fumeiro nos cabelinhos, e – pior – que escola, que aprendizagens, que tipo de amigos terá? Ah, tão míseras as ambições que a imperatriz tem para Joaquim mas tão vasta a arrogância com que põe e dispõe dele.
– Ela julga o quê? Que lá por ser mãe o menino lhe pertence?
Pobre senhor Pereira, sempre mais perto da verdade do que supõe. Estou solidária com a sua perda, mas lembre-se do que ensinam os que desde sempre vivem em territórios de disputas e conflitos: quem domina a nascente domina o rio.
26.7.21
A cabeleireira entra no pão quente como um foguete de festa, abre os braços, dá duas voltas sobre si mesma, finaliza a coreografia em pose de pin-up e anuncia: já estou toda vacinadinha, toda! Estouram palmas e vivas. A dona do pão quente, que tem vocativos de realeza para todas as clientes sem olhar a modos, porte ou traje, investe logo cuidados especiais:
– Senta-te, minha princesa, que já te levo um café e ofereço-te um brigadeiro.
– Brigadeiro não, que me vai direitinho p'rás ancas. Traz só o café.
Escolhe uma mesa, senta-se, alonga um suspiro, olha ao redor a certificar-se que é notada. Vibra nela a felicidade de quem resolveu uma dívida antiga ou se livrou de um marido inútil. E é tanta a leveza que vai para tirar a máscara, mas em menos de um ai soam os alarmes da censura pública porque, afinal, vigiavam a iminência do deslize os mesmos que antes felicitavam pela conquista.
– Olhe que não pode tirar isso!
E por todo o pão quente, a ressoar como o eco nos fins de mundo e nas amplidões desertas: não pode, não pode, não pode, não pode.
Não sei se é nos ouvidos ou na alma que me agride o folclore. Pago depressa a minha meia dúzia de moletes – é tudo, princesa? – e saio a invejar a cabeleireira. Ai o tanto que me apetecia um brigadeiro e quem dera que me fosse todo para as ancas.
23.7.21
Costumam vender-se com predicados apelativos, mas são muito intrujonas as pessoas que garantem fazer omeletes sem ovos e abusadoras as que pedem que se faça. Sem ovos eu também faço coisas extraordinárias, mas só desonesta lhes chamaria omeletes. Certas gracinhas e artifícios de linguagem podem até abrilhantar discursos e deslumbrar ingénuos, mas não honram o talento de ninguém.
20.7.21
Se não há um gato em cada casa deste país, deve ser verdade que há pelo menos um gato numa janela defronte de cada casa deste país. A mim coube-me a graça quotidiana de um branco e cinzento, que vive num parapeito do outro lado da rua. Não há quem, antes dele, saúde a alvorada ou seja tão disposto à adulação do astro-rei. Claro que tudo é feito de forma discreta e indolente porque a descendência felina, ainda que abastardada pelo cruzamento com os hábitos humanos, não bajula por dá cá aquela palha nem com modos que diminuam. O gato prefere a calada e os rodeios que, no comércio bem aprendido de carícias, lhe garantem sempre a margem superior de lucro. Porta-se como um amante ocasional, cujo segundo maior talento é ir embora antes de entediar e por isso faz sempre desejado o seu retorno.
15.7.21
O progresso tem passo rápido e engole o que obstar a sua marcha. Em três anos fez desaparecer o caminho que eu fazia com os miúdos, de bicicleta, nas manhãs de domingo. Devorou os campos de girassóis, as bouças e os eucaliptais, o prado onde parávamos para invejar a santa vida dos bovinos e rejubilávamos com a novidade dos vitelinhos à sombra dos corpos das suas mães. Apropriou-se de terrenos, derrubou velhas moradias e por ali rasgou estradas, desviou cursos, estendeu asfalto, levantou viadutos e arredondou os cruzamentos problemáticos. Reposicionou até as estruturas dos outdoors, onde agora os candidatos às juntas de freguesia exibem magníficas próteses dentárias.
14.7.21
Manso, sem vícios nem queda para confusões, o Marco do ginásio tem a simpatia das senhoras. Que rico marido dava. É pontual e correto, contorna os conflitos, vira costas aos aborrecimentos, dá-se bem com toda a gente. Lê sempre o mesmo jornal, treina e come a horas certas, tem a contabilidade das calorias organizada. Há de dedicar-se a uma só mulher a vida toda, nenhum devaneio o arrancará à firmeza do terreno que escolher. O hábito desaprova a generalidade das paixões e a disciplina é um caminho egocêntrico, que faz voz grossa quando fala ao coração. O mais provável é que o Marco do ginásio não seja lembrado por nenhum feito grandioso, mas ao menos também não poderão culpá-lo de nenhuma desgraça. Raparigas como a da papelaria mal olham para ele. Por mais que sonhem com um amor eterno e seguro, não confiam em espíritos de pouca ambição sentimental. Já Gabi, a manicura sonsa, talvez veja as coisas de outro modo.
10.7.21
Corroborando a ideia de que a beleza e a tragédia estão destinadas uma à outra, Isabela adoeceu de um mistério qualquer. Espalhou-se por todas as partes do seu corpo uma substância pegajosa sem cor nem cheiro, algumas flores definharam e nas que sobrevivem há pintas pretas e alaranjadas, que também apareceram na borda das folhas. Afastei-a do tamborete e das plantas próximas e pedi ao auxílio ao google. Em vão. Também no mundo das plantas a sabedoria é um universo de lugares ambíguos, cinzentos, onde a verdade tem faces antagónicas e tantas vezes se assemelham os indícios da morte e da vida, da doença e da regeneração, do veneno e da purga. E como é difícil, entre os resultados, distinguir os sábios dos manhosos e os que estudam dos que copiam!
Mesmo imaginando que, por parecer enjoadinha, afetada e elitista, Isabela nunca terá colhido a simpatia dos leitores, arrisco vir aqui pedir ajuda, certa de que os bons sentimentos predominam sobre os partidos tomados em velhas batalhas. Sei também que quem conhece as curas para o sofrimento alheio – ainda que seja só de uma flor – é sempre dotado de coração bastante para não virar as costas sequer a uma lágrima silenciosa, quero eu dizer, a umas pintas mofentas.
Isabela agradece desde já o que para a sua salvação for sugerido pela via do endereço de e-mail que está sempre no fundo desta página.
8.7.21
Que trabalho tão doce e digno trouxe hoje Patrícia Sequeira às salas de cinema. Para quem, como eu, era uma garotinha de ganchos dourados e saia escocesa à entrada dos anos oitenta e desse tempo tenha lembranças capazes de sustentar a alma pela vida inteira, este Bem Bom pode ter sido o presente mais bem embrulhadinho, a alegria mais justa, a hora mais suave do impossível ano que corre.
7.7.21
(Cedo ou tarde, havia de rebentar esta guerra. É para isso que serve o tempo de paz e se fazem pactos e acordos e se distribuem partes, posses e rendimentos: para que todos repousem e sejam devidamente munidos de convicção e energia. Assim, na hora em que por velhas razões se inflamarem as sensibilidades e se violarem as regras, partirão para o combate com a força inteira e voluntariamente dispostos. O tempo de paz é sempre breve. Fosse longo e entorpecer-se-iam as paixões, as certezas, as ganas, os músculos. )
Alice tem os deditos suspensos sobre as teclas e a rapariga da papelaria, a imaginar a filha nas luzes da ribalta, pede sossego à audiência – a avó, duas ou três velhas, o Marco do ginásio com o Notícias sob o bíceps, e eu, que fui retida a caminho da farmácia. Silêncio, que a menina vai alinhar-se com os deuses e o pianinho de brinquedo revelará o quão próximo deles chegam os que, eleitos entre humildes e anónimos, são talhados para deslumbrar os corações humanos. Alicita espreita a mãe pelo canto do olho e levanta os braços a imitar os trejeitos desses génios estereotipados da música erudita. Mas, ao invés de os pousar nas teclas com a delicadeza esperada, deixa-os cair desastradamente e põe-se a bater com um ritmo e uma violência que só ao bombo da fanfarra conviriam. As velhas sobressaltam-se. O Marco do ginásio sorri, maroto, solidário com a infância. A rapariga da papelaria encolhe os ombros. Que deceção.
Alicita ignora as reações, ninguém mandou que empenhassem nela tão grandes expectativas. A avó explica que a menina anda arisca desde que é sabido que vai ter um irmãozinho. Um meio-irmão, corrige a rapariga da papelaria, com o indicador levantado. E uma impressão de poder, de exclusividade, fá-la levantar o queixo acima do hábito. As velhas distraem-se das raspadinhas e arrebitam a orelha:
– Como assim, dona Fátima?
É o que é: a mulher do pai de Alicita está de cinco meses.
– Mas isso é uma alegria para a menina, que rico presente é um irmão!
Meio-irmão, insiste a rapariga, uma fúria adolescente rebrilha nos seus olhos, pousa com estrondo a resma de jornais no balcão. Meio ou inteiro, também não é o que vem ao caso, esclarece a avó. Parece que, assustada com as coisas da pandemia e receando que o coronavírus faça mal ao bebé, a grávida não sai de casa há três meses nem autoriza ninguém a entrar. Então, a menina nunca mais viu a madrasta nem chega perto para ajudar a preparar a chegada do irmão. Meeeeeeeeio, a rapariga está a um passinho do descontrolo. Nos fins de semana que lhe cabem, o pai vem buscá-la e passeiam-se o dia todo em ruas e jardins – shoppings quando calha chover – à noite devolve-a, vai para casa, despe-se todo à entrada, lava-se e só depois lhe é permitido chegar-se à mulher. Com isto ninguém espera que os nervos da menina resistam, anda teimosa, birrenta, provocadora, dorme mal, come pior. As velhas condescendem:
– As crianças sentem tudo, mesmo o que não percebem.
E os adultos também! e, como se lhe desatassem um nó, a rapariga da papelaria vaza em torrente o que lhe ordena o sarilho recalcado de mágoas, memórias, raivas e razões: o pai de Alicita é um banana, a mulher é que manda nele, que espécie de pai deixa que lhe imponham as regras de estar ou não estar com a própria filha, se escolheu casar com ela que a aguente, mas não submeta a menina ao mando dela, ah, bastou tê-la visto numa ocasião e de relance para perceber que não era boa rês, vá-se lá perceber com que inteligência chegou a engenheira, tem mesmo arzinho de cábula ou graxista, isto não se faz a uma criança, ela que se vacine, que se mate, que vá pró diabo que a carregue, mas rejeitar a menina como se tivesse sarna? E o palerma ámen, ámen. Banana, palhaço, inútil, queira deus que dele não tenha Alice herdado muita coisa. Qualquer dia quem não a deixa mais ir sou eu e a justiça há de estar do meu lado.
Tudo isto lhe sai de uma assentada e em ninguém encontra resistência ou discordância. A avó, as velhas e mais quem ali passe, todos sabem que é perdido o tempo que se invista a apaziguar o coração ofendido de uma mãe, pois são dele todas as razões e mais algumas.
Por esta hora, o Marco do ginásio já desertou com o Notícias. Não tem musculatura para isto. A rapariga da papelaria é bonita, bem feita, engraçada, esperta, doce e generosa como poucas, mas tem humores que requerem entendimento, uma carga que dá muito trabalho e disposição para guerras que não são as dele.
6.7.21
Encontram-se numa esquina da avenida. No passeio à direita, espera ela com o cão. Ele atravessa do lado oposto, ajoelha-se na calçada, enche o animal de festas, beija-lhe o focinho, fala-lhe em segredo, coça-lhe as orelhas, o pescoço, as costas e o peito. Entre pinotes e lambidelas, o cão goza do privilégio e quantos carinhos é possível receber de um ser humano, ele recebe sem preço ou condição. O homem e o seu animal dão ali o exemplo do amor simples e honesto, celebram a banalidade do encontro quotidiano, preenchem com ternura todos os vazios do corpo e do espírito de modo a que não sobre espaço para perguntas, nem se permita à imaginação derivar em suspeitas, traições e finais dramáticos. Depois – muito tempo depois – ele levanta-se e, sem olhar, beija de raspão a boca da rapariga. Com um gesto breve ganha a posse da trela. Ela vai descendo a rua de mãos a abanar enquanto ele atrasa o passo, a perpetuar o desencontro. Parece difícil amar incondicionalmente quem não vive para nos lamber os dedos.
2.7.21
Com a sua coleção de rancores familiares, Ana Isabel, a mais nova das manas Pereira, tem vindo a perder brilho. É-lhe inútil o investimento no voluntariado. Acarinhar a desgraça alheia não a salva da indigesta combinação do hábito de maldizer com a incapacidade de profundamente perdoar. Coitada, pratica a solidariedade como quem faz férias: quanto mais longe de casa melhor. À cara da mãe atira a inconsistência de princípios e esfrega sempre a mesma fatura, como se os filhos fossem os únicos e justos credores nas contas mal feitas do casamento dos pais. Supõe-se uma rebelde por se levantar da mesa, virar as costas e desaparecer durante meses, mas é, em boa verdade, herdeira de uma fraqueza muito antiga: chora-se uma vítima da geração anterior e exige da geração seguinte o que não deu. E se estou certa disto é porque de passagem ouço o sussurro com que impõe a autoridade à sua menina exemplar: sou tua mãe, sou mais velha e experiente, nem te admito que ponhas em causa o que digo, 'tás a perceber?