9.11.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada divaga no pão quente sobre a turbulência política e aproveita para fazer saber que está de baixa. Os nervos sucumbiram, já não há medicação que dê sentido a esta vida e o médico deixou claro que só voltará a pôr os pés numa sala de aula quando recuperar a força anímica. Mas enquanto puder fugirá desse dia como o diabo da cruz, nem que tenha de falsificar lágrimas e reinventar as suas dores. Cada hora com aqueles demónios é um calvário, falta-lhes tudo, intelecto, interesse, boas maneiras, safa-se um ou outro de espírito mais vivo e curioso mas até esses, com o tempo, acabam arrastados pela maioria. Por culpa da escola, todas as noites – todas, todas, não garante porque é preciso descontar as que não dorme – cai na trama de pesadelos que prefere nem contar e quando acorda dói-lhe tudo, as pernas desobedecem, a garganta fecha-se, a visão turva-se, os dedos das mãos incham.
– Então e os dias com o rapaz em Barcelona, princesa?
Uma canseira, ele a querer mostrar todas as magnificências da capital catalã e à professora só apetecia o aconchego de um sofá, o entendimento de um livro de poesia, uma água fresca com limão, a ternura fácil dos seus gatos pretos. 
– Dá Deus nozes, princesa...
Quais nozes, qual quê, aquilo parece uma feira popular, carreiros de gente, empurrões, escarcéu, toda a gente olha para tudo e ninguém vê nada, não há silêncio que favoreça a contemplação, o mundo muito desarrumado pelas ruas e aos solavancos nos monumentos, tantas raças, línguas e cores, um compra e vende em cada esquina, talvez exagere mas foi assim que as coisas lhe pareceram. E o rapaz sempre a puxar por ela. Custa aos filhos compreender que as mães se esgotam nos primeiros vinte anos de vida deles, que depois disso a folia e a aventura já não seduzem? Que interesse há em andar para lá e para cá, ir para dizer que foi, ver para dizer que viu? Chegando ao fim, voltando a casa, que diferença fez? 
– Então, princesa? Alargou horizontes, sei lá...
E que diferença fez, repete, que diferença fez? Pegue-se num livro de poesia, vá, num bom livro de poesia. Não tem mais e melhor efeito? A funcionária do pão quente perde argumento e palavra. De poesia não pode falar, nunca lhe deu para ler e mal teria tempo para isso, mas se houvesse dinheiro, era certinho que viajava todos os continentes.
– Tem de se dar mais à felicidade, princesa.
As coisas não são assim simples, mulher. Fala da felicidade como se fosse um vento que se apanha ou um traje de lantejoulas que se veste de manhã e dispõe logo a bailar com o mundo o dia inteiro. Que aberração! É direito de qualquer um ser infeliz em paz e sossego, ter um canto da casa mal iluminado e com pó de muitos anos ou uma dor de estimação para alimentar todos os dias. Até de uma princesa.