11.8.23

Dentro de um par de dias, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada embarcará para Barcelona, a visitar o rapaz. Um aborrecimento, com esta caloraça e os aeroportos à pinha, mas o que é que uma mãe não faz por um filho? pergunta e, num suspiro, espalha ao redor o açúcar do pastel que abocanhou com mais ganas do que dentes, ou não fosse a gula, entre todos os prazeres que nos condenam aos infernos, o mais desajeitado. Contudo, a verdade é outra. Pudesse esquivar-se e repetiria mais um agosto na clausura, trasladando as pilhas de livros entre o quarto e a sala, tropeçando na impaciência dos gatos, mastigando a saudade de um corpo presente, não para amar, que disso já não se acha merecedora, mas para aquele consolo instantâneo que o êxtase oferece e que só comove quando acontece nos braços do outro. Está-se bem é em casa, na companhia de uma dor tão velha que já nem prega sustos nem pede contas. Mas como se desculparia ao rapaz, há mais de cinco anos a pedir a visita da mãe? E o que diria a esses, por tudo e por nada deslumbrados, que veem a sorte grande numa casa à disposição para lá da fronteira?
– Ai, sotôra, quem me dera embarcar eu, fosse pr'onde fosse, e tão cedo ninguém me punha as vistinhas em cima.
Diz a cabeleireira. O riso dela troa como o das bruxas, engasga-se com o fumo do cigarro e Gabi prontamente acode, sovando-a entre as escápulas. Talvez aproveite para fazer justiça à sua condição de assalariada, toma lá esta por todas as horas além da hora, esta pela esmolinha ao fim do mês, esta pelo subsídio de férias que só vem depois de as gozar, esta pelas tostas mistas almoçadas no gabinete da fotodepilação para não fazer esperar as doutoras. 
– Se é de fugir que tem vontade, o melhor é falar com um especialista, pode estar a precisar de tomar alguma coisa. 
Assim aconselha a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, ou, melhor dizendo, assim fala o roto ao nu e dele se apieda. Coitada da professora. A morte avança para ela a passos largos. Não a morte definitiva, material e misericordiosa, que poupa a alma ao pavor da eternidade e à insuportável carga da sabedoria, que termina coroada de epitáfios e a encher de culpas o coração dos vivos. Antes a morte que obriga a manter os olhos abertos e arranca o corpo à cama todos os dias e o faz tombar de novo a cada noite sem lhe ter autorizado uma única esperança, uma única carícia.