27.2.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada fez desabar ontem uma pilha de cestos de rodinhas à porta do supermercado. Não vi como sucedeu, mas ouvi o estrondo e, por estar perto, acudi. Juntas, restaurámos a ordem, colocando novamente os cestos no lugar com grandes esforços para garantir o equilíbrio da torre, porque se eu sou miudinha e tenho pouca amplidão de braços, ela é obesa e mal pode com os dela. No tempo que durou a empreitada, a professora nunca me olhou e, assim que terminámos, deu-me as costas e foi embora com o andar lento, anestesiado, sem obrigada nem adeus, como uma tartaruga gigante que apenas buscasse um lugar para morrer. Antigamente, tomá-la-ia por mal-educada e isso havia de deixar-me febril de indignação, a desfiar mentalmente toda a sorte de palavrões que me aliviassem. Agora, sei que a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada nem sequer me notou. A cismar nos seus cansaços quotidianos, na sua velha – e tão injusta – solidão, nas culpas que, não lhe pertencendo, acabaram por cair nas suas costas, ficou cega e surda. As dores, assim remoídas e trituradas, espalham à volta do seu corpo uma poeira fina que lhe desbota a imagem do mundo e a distancia dele. Viu-me como se eu nem ali estivesse e hoje, ao lembrar o episódio dos cestos tombados, talvez se convença de que foi um sonho. Isso dá mais medo do que toda a má educação que possa haver na vizinhança deste blog.