16.1.20

Fui a casa dos Pereira beber um Porto pelo aniversário de Joaquim. Abordada na rua e arrancada com violência a devaneios pouco dignos de relato, não arranjei desculpa. Violência é modo de dizer. Foi antes entusiasmo, mas tão exacerbado que tive a impressão de me puxarem pelos cabelos, como gente do povo medieval que, sem contemplações, é obrigada a prestar culto à realeza, remetendo todos os seus afazeres e necessidades para o plano do inútil. Numa derradeira tentativa de fuga, mesmo à porta, ainda inventei que os meus filhos me esperavam, mas a mulher do senhor Pereira reprovou-me, escandalizada, com a sua cosmopolita afetação, ora essa, os meninos têm de se fazer homenzinhos! É extraordinário: quanto mais embaçados os nossos espelhos, mais rápidos somos a apontar dedos, ditar leis e a sugerir caminhos. Entrei, portanto, resignada e disposta já a colaborar na festa, puxando à cara o meu melhor sorriso e as boas maneiras que esqueço quando o traje que me obrigam a vestir é apertado ou de fraco corte.  
No hall, tive de venerar a fotografia de Joaquim – impressa em tela e ladeada por dois ramalhetes de tecido vermelho-escuro – e concordar que sim, que o menino se fará um homem magnífico e que a sua pose, com as mãozinhas levantadas como as de um bandarilheiro, é já indício de uma disposição rara para enfrentar corajosamente as agruras da vida. Foi este o retrato que me disseram, por vias travessas, ter acordado as divergências familiares logo após o Natal. Nutrida por um perigoso cocktail de raiva, mágoa e ciúme que certamente ferve em lume brando no seu peito há muito tempo, a primogénita acusou os pais de todas as injustiças que de memória lhe ocorreram, culminando no facto de os retratos das netas, além de mais pequenos e modestamente emoldurados, terem ido parar a uma outra parede, onde a luz é só um suspiro ao fim do dia, para darem lugar ao retrato do menino, sempre o menino, o menino, o menino, o filho daquela que se julga maior e melhor e que, ouçam o que vos digo, há de enredar tudo e todos na teia dos seus caprichos. 
O chorrilho de acusações, com que a irmã mais nova acabou a fazer coro e que o irmão não teve fôlego nem caráter para rebater, mudou tudo. Doravante souberam a fel as rabanadas e desapareceram, juntamente com os laços dourados e os papéis de embrulho, a alegria e a gratidão pelos presentes trocados na véspera. As manas Pereira arrastaram os maridos invisíveis e as meninas exemplares dali para fora sem um beijo aos pais e assim ruiu o presépio que com tão magnânimas intenções o senhor Pereira quis compor, julgando que na magia de uma noite santa podiam dissolver-se mágoas de uma vida inteira.